a deriva dos continentes

A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

minuto/s restantes

Parece que, um belo dia, antigamente, toda a gente combinou entre si mentir a este respeito, e continua a mentir até hoje. Toda a gente diz que odeia o mal, mas, no fundo, toda a gente o adora.

“Não tem vergonha de estar a destruir-se a si mesma?

“Apetece-me destruir-me. Oiça: agora, por exemplo, vão julgar o seu irmão por ter morto o pai, e agrada muito a toda a gente que ele o tenha morto.

Agrada a toda a gente que ele tenha morto o pai?

“Sim, agrada a toda a gente! Toda a gente diz que é um acto horrível, mas no fundo toda a gente gosta disso. E eu sou a primeira a gostar.

“Nisso de toda a gente há uma certa verdade – disse Aliocha baixinho.”

Fiódor Dostoiévski

OS IRMÃOS KARAMÁZOV


Nota inicial sobre o título[1]


Não sei quando foi, nem como foi, que a corrupção começou a esticar cada vez mais as suas raízes dentro da política portuguesa como o eucalipto faz às dele se andar à procura de água em terrenos áridos. Não sei nem observei, porque estava a trabalhar nos Estados Unidos. sabendo uns factos que pareciam anedotas de mau gosto mas eram factos, e quando voltei com os meus meninos para Lisboa, já o Primeiro-Ministro era José Sócrates. Vivia-se mal, muito pior do que nas minhas recordações do País onde vivi até ir estudar para Buffalo, mas os diferentes membros do governo iam-nos explicando que esse era o preço a pagar pela integração na União Europeia. Às tantas percebi que estavam a rasgar-se na paisagem SEIS auto-estradas paralelas entre Lisboa e Valença do Minho, mas explicaram-me que era “para beneficiar toda a gente por igual[2]” e fazer chegar “os frescos” mais depressa aos supermercados[3]. Construíam-se cidades colossais para albergar aeroportos que depois nunca existiram, assim como se desbastaram áreas enormes de terreno para permitirem a passagem de um TGV que depois nunca passou[4]. E cada vez se percebia melhor, cada vez doía mais, mas não perceber já nem era possível: o dinheiro público andava a passar de mão em mão[5] de forma pouco clara, no mínimo.


De Sócrates[6], o governo passou para as mãos de Passos Coelho[7], e nessa altura ouvíamos falar cada vez mais em luvas, empresas falidas, particulares insolventes, e jovens acabados de formar pelo Ensino Público a partir, a partir, e a partir. Por essa altura, começa também a estar na moda os Bancos irem ao fundo, os Banqueiros a apropriarem-se com tudo o que podiam e fugirem, ninguém os perseguia, e ninguém mostrava qualquer preocupação com os lesados destas transas porque tudo aquilo voltava a reconstruir-se com mais dinheiro de mais impostos.

É exactamente neste ponto que se ouvem duas ou três piadas indecorosas, absolutamente destituídas de fundamento, sobre vir aí a falência do BES.

person holding 20 us dollar bill

Ora acontece que vivia ainda em Portugal, por esses dias, um jovem comediante que faz hoje stand-up em inglês para as multidões de empresários que esgotam os quartos dos hoteis de cinco estrelas na Arábia Saudita[8]. Formava uma pandilha que tinha um nome qualquer do género FEIOS, PORCOS E MAUS, juntamente com mais dois partenaires, uma idosa cheia de piercings e um total anarquista da caricatura, que reunia todos os sábados à noite para debater os diferentes e desgraçados impactos da pobreza imposta por Passos Coelho com a explicação sumária de estar a ser imposta pela UE. Não diziam nada que fosse especialmente interessante, mas quando os meus alunos de Mestrado vinham trabalhar para minha casa nessas alturas, pediam-me sempre para ver ao menos meia horinha daquilo. E é exactamente nesse sábado, dois dias depois das duas ou três piadas parvas sobre a falência do BES, que de repente, sem vir minimamente a propósito, o jovem comediante diz assim:

“Epá, devia ser proibido por lei assustar as pessoas desta maneira. Se querem saber, eu, por mim, tenho uma valente conta a prazo no BES. E estou perfeitamente sossegado. Não corremos risco nenhum, por isso eu não tenciono minimamente tirá-la de lá!”

Eu estava de joelhos no chão a organizar pilhas de fotocópias, e dei um tal salto de raiva que espalhei tudo à minha volta.

“Cabrão de merda!”, gritei eu para a imagem do comediante na televisão. “Com que então, até tu estavas à venda?” – virei-me para os meus aluninhos perplexos. “Vocês não viram bem este filme de terror? Como aquele menino é o amor de toda a gente, o BES paga-lhe uma fortuna para ele chegar ao debate e aconselhar as pessoas a não tirarem o seu dinheiro do BES, uma vez que até ELE continua a ter o seu dinheiraço do BES! Puta que pariu, isto é perfídia pura. Ai, meninos, tirem-me deste filme. Não aguento continuar a assistir ao espectáculo da corrupção crescente que grassa no meu próprio País!”

“Ó Professora!”, disseram logo os mestrandos, cada um para seu lado. “A Professora é que devia estar a dizer essas coisas na televisão! Vá para a televisão, por favor, vá dizer essas coisas na televisão!”

“A televisão? A televisão ia querer-me lá a dizer estas coisas?” – e logo a seguir saiu-me de chofre, antes sequer de pensar: “Ai, foda-se. Então os meninos ainda não notaram que já nem sequer há televisão?”

E pronto, poucos meses mais tarde não estava na televisão: estava antes nos Estados Unidos.

Espero que ao menos apreciem os meus dotes visionários, e que, não sendo eu o Sérgio Conceição, possam perdoar-me pelo meu vernáculo. A questão é que vocês ainda não me conhecem. O que faz perfeito sentido, porque eu própria ainda não me conheço assim tão bem como isso.


Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] O Presidente do FCP teria certamente feito coro connosco, ou pelo menos aplaudido o nosso arroubo de fusão, mas quando se deu este fenómeno místico o eterno Contra-Almirante não estava lá na casa de Alfama para escutar as minhas palavras – as tais que me saíram por instinto puro, mas que pareciam mesmo saídas de um daqueles comentários que o seu treinador cospe para a relva quando foi posto fora num vermelho directo. Só falei uma única vez com Jorge Nuno num qualquer jogo brutal em que fui convidada de homenagem, aliás de tanta homenagem que me sentaram mesmo ao lado dele, logo ali na fila da frente. Estava um frio de Inverno nortenho que mal se tolerava, eu trazia um casaco de raposa apache de bolsos grandes e franjas enormes, e, parte bem educada parte piedosa, ofereci-lhe o bolso do seu lado para ele aquecer a mão. O Grande Chefe fez o sorriso de Raposa Matreira mais bem esgalhado deste mundo, sem precisar sequer de olhar para mim, e disse apenas, só para eu ouvir, “eheheh – cuidado com as escutas!”.

[2] É incrível, agora, ao fim de todos estes anos de tangas políticas e financeiras cada vez piores, lembrarmo-nos da energia que ainda gastámos a discutir uns com os outros se o que estava em causa era mesmo o benefício dos eleitores, ou se era outra coisa qualquer ainda mal definida, mas que já não pressagiava nada de bom.

[3] Nunca ninguém me explicou claramente, no entanto, se os produtores desses “frescos”, que o governo dizia querer “beneficiar”, iriam ter que pagar aquelas portagens chorudas que se pagam nas autoestradas, ou se quê. Nem sabemos bem se essas autoestradas ainda estão funcionais. O Vale da Régua, um dos maiores milagres das nossas paisagens naturais, agora tem por cima uma ponte colossal, feia como cornos (oops, lá saltou outra vez cá de dentro o Sérgio Conceição), posta ali há quase vinte anos como tabuleiro da Autoestrada de Viseu. Passei lá por cima uma vez, para mostrar a paisagem a uns estrangeiros – e bem me lixei porque aquilo era tudo gente concernée, que não queria acreditar que um Governo Europeu, secundado por toda a União Europeia, tivesse admitido erguer-se ali uma tal infâmia. Foi tão penoso que acabei por explicar que a ponte da autoestrada fora paga com as fortunas dos Casinos de Macau, que incluíam muitas vezes nos prémios passeios românticos Douro acima em Barcos Rabelos – e que os primeiros compradores de mais aquela jogatana dançante do Senhor Stanley Ho tinham sido os espanhois, e não os portugueses.

[4] E boas reportagens sobre tudo isto? Não nos fizeram imensa falta? Não continuam a fazer-nos imensa falta? De que é que os jornalistas têm medo? Dos dois matulões da MOSSAD que andavam aí a desempenhar as funções de guarda-costas de Ricardo Salgado? Ah, por favor, isto ainda não é a faixa de Gaza, quand même. Mandem-me lá a mim, que eu faço. Não tenho filhinhos pequeninos nem paizinhos velhinhos. Escuso de estar aqui a empatar.

[5] Curiosidade interessante, a recordar algumas regras elementares da taxonomia: o dinheiro passava, de facto de mão em mão – mas essas mãos tinham que ser sempre as mesmas, ou recomendadas por outras iguais.

[6] Notícias posteriores sobre a vida deste ex- PM: a) as suas férias na Quinta do Lago eram tão pagas pelos contribuintes como o seu apartamento caríssimo em Paris; b) o título de Engº vinha-lhe de um Mestrado feito por medida numa qualquer Universidade Privada, cara mas camarada; e c) ao fim de uns tempos foi preso, mas ninguém explicou aos portugueses porquê.

[7] Foi um senhor que concorreu às legislativas enquanto social-democrata. Nunca sorria, mas explicava que isso era de ver o País em tão mau estado. Bastaram dois ou três meses para se perceber com toda a evidência deste mundo que, na realidade, o senhor não era nada um social-democrata: era mas era um perigosíssimo neo-liberal, e assim continuou até ao fim do seu mandato. Também não percebo como podem manter-se no poder pessoas que afinal não representam minimamente o que disseram que iam representar. Só me lembro de já estar no desemprego, a cair de fome, sono, e frio, numa fila para o subsídio algures em Sintra, e ouvir o cretino dizer na rádio, todo cheio de si próprio, “temos que fazer cortes substanciais no desemprego, porque há demasiadas pessoas que vivem de expedientes.” Filho da mãe. Houve quem chorasse. Ex-pe-di-en-tes!

[8] Ou, escrevendo a mesma frase de maneira mais sucinta: “… que faz hoje fortunas obscenas no Médio Oriente.”

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