Este editorial estava simplesmente para se intitular Quo vadis, Jornalismo?, mas soou-me demasiado reflexivo. E não poderia ser. É mais um manifesto. Um manifesto a favor da sobrevivência da nobre profissão do Jornalismo e da função primordial da Comunicação Social, e contra aqueles que eliminam sorrateiramente, como lobos vestidos de pele de ovelha, a independência dos jornalistas, enquanto batem muito no peito com o cravo na lapela.
Detesto hipócritas – e é sobre dois hipócritas que quero escrever. Como um é mulher e outro homem, está aqui consagrada a paridade, e confirmado que o deslustre não escolhe géneros.
Pois bem, depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) sobre pedidos de documentos administrativos feitos pelo PÁGINA UM, e recusados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), houve dois jornalistas que integram o Secretariado da dita entidade que ontem deram a sua decisão.
Destaco uma frase – toda ela um tratado – como argumento para manter a recusa do acesso a actas – a simples actas, ó Céus! – das suas reuniões, assinadas pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, que formam o Secretariado da CCPJ:
“Não existindo a concretização de uma finalidade específica para aceder às atas do Plenário (que, sobretudo, contém informação relativa a jornalistas, apreciações e ou juízos de valor sobre estes e, ainda outros dados suscetíveis de pôr em causa o seu bom nome) sendo, como se demonstrou, insuficiente evocar a qualidade de jornalista para aceder a documentos que pela natureza do seu conteúdo são nominativos, é legítima a avaliação da CCPJ no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos caso a eles o requerente tivesse acesso.”
Há momentos em que sinto vergonha alheia. E também incredulidade. E falta de empatia. Tenho dificuldades de me colocar na pele de Licínia Girão e de Jacinto Godinho – ainda mais neste, outrora reputado repórter de investigação premiado da RTP e professor de Comunicação Social numa universidade pública, que até aprecia contar histórias contra a PIDE – para compreender como o seu azedume ao PÁGINA UM, e a mim, os pode fazer escrever tamanha monstruosidade atentatória da Liberdade de Imprensa.
Agora um jornalista tem necessidade de concretizar a “finalidade específica” para aceder a documentos públicos, como simples actas?
E sobretudo se esses documentos contêm “informação relativa a jornalistas”? São agora os jornalistas insindicáveis? Podem eles cometer as maiores barbaridades e corporativamente ser tudo escondido?
Se assim é, porque não conceder similar benesse a políticos, magistrados, administradores públicos, funcionários públicos, enfim, a todos?
Ademais, se a CCPJ assume ser legítimo a sua avaliação “no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos”, por que não considerar então legítimo que o Governo implemente um Serviço de Exame Prévio aos pedidos de jornalistas, recusando liminar e discricionariamente se estes não forem “simpáticos”?
Só esta frase de Licínia Girão e Jacinto Godinho merecia que jornalistas com um pingo de decência nesta pobre democracia se insurgissem e os corressem a pontapé do Palácio Foz. Mais não seria necessário; mas também nunca menos. Merecem. São gente desta jaez que assassina, literalmente, o Jornalismo; que já perderam os escrúpulos e a vergonha por um par de vinténs, ou já perderam a noção do que escrevem, das posturas que tomam, das consequências dos seus actos e das suas mesquinhas raivas.
A frase acima exposta é o corolário daquilo que nenhum jornalista pode aceitar – porém, é uma frase escrita por jornalistas, defendida por jornalistas e aplicada por jornalistas. E apenas porque assumem eles que os ando a “perseguir” e a fazer pedidos “manifestamente abusivos”.
E, no entanto, estou a fazer no PÁGINA UM a essência do Jornalismo: perguntar, sindicar, expor, denunciar, informar – usando todos os expedientes legais, incluindo judiciais. Livremente. Sem agendas. Sem interesses económicos, financeiros, partidários e ideológicos. A minha independência mete-lhes medo, porque imprevisível e incontrolável. Por isso, fazem-se de vítimas de perseguição se lhes faço quatro pedidos de documentos. A hipocrisia em seu esplendor.
Que achará então o Governo e outras entidades quando o PÁGINA Um, perante recusas similares a pedidos de documentos, apresenta intimações no Tribunal Administrativo?
Devem essas entidades – listemo-las: Conselho Superior da Magistratura, Infarmed, Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos, Ministério da Saúde, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Administração Central dos Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Presidência do Conselho de Ministros e Parque Escolar –, algumas já com mais do que um processo de intimação nos tribunais, juntarem-se, em coro aos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, e promoverem um clube anti-PÁGINA UM para me meterem em ordem? Talvez pelourinho?
Presumo que seria dia de festa numa Comissão que acredita os títulos (carteiras) de uma profissão cada vez mais desacreditada aos olhos dos cidadãos.
Não foi para assistir a vergonhosas atitudes destes pequenos ditadores travestidos de jornalistas que se estabeleceu a democracia.
Fico por aqui, poupando a análise do argumentário de 11 páginas – que pode ser lido aqui, na íntegra –, onde os ditos Licínia Girão e Jacinto Godinho expõem os seus motivos salazarentos para recusar, entre outros documentos, o acesso a processos concluídos a jornalistas em violações da ética profissional e aos ganhos em senhas de presença e outros rendimentos para gerirem um organismo público.
O caso seguirá, obviamente, em breve, para as instâncias judiciais. Até lá, espero que os jornalistas decentes não se calem agora, pois se assim procederem, um dia, quando quiserem falar, talvez o “trabalhinho sujo” de tipos como Licínia Girão e Jacinto Godinho tenha já contribuído para lhes tirarem a língua. Ou as mãos. E até também as pernas. Ou mesmo a cabeça.