As investigações ao mundo dos negócios dos media mainstream por parte do PÁGINA UM, desde a sua criação, revelaram cedo as ligações entre a Gaiurb, o município de Gaia, a Global Media e Domingos de Andrade, o jornalista-administrador globetrotter da Global Media. O processo em curso instaurado pelo Ministério Público, no âmbito da Operação Babel, por favorecimento em abordagens noticiosas, arrisca mudar o panorama dos contratos promíscuos entre a imprensa e entidades públicas, até agora sem controlo do regulador dos media (ERC) e dos jornalistas (CCPJ).
A promiscuidade entre a Global Media – detentora dos periódicos Jornal de Notícias e Diário de Notícias e da rádio TSF – e a autarquia de Vila Nova de Gaia, agora alvo de um processo intentado pelo Ministério Público, começou a ser denunciada pelo PÁGINA UM em Dezembro de 2021.
De acordo com notícia de hoje da Lusa, um despacho do Departamento de Investigação e Ação Penal Regional do Porto (DIAPRP) revelou que o Ministério Público acusa o presidente da edilidade socialista, Eduardo Vítor Rodrigues, de ter determinado “a outorga pelo Conselho de Administração da Gaiurb, de modo arbitrário, sem qualquer requisição de despesa, manifestação de necessidades ou proposta de contratação de serviços e/ou fornecimentos de bens emanada pelos respetivos serviços, contratos públicos com o Grupo Global Media“.
O objectivo: garantir a chamada “boa imprensa”, como se pode constatar na leitura do Jornal de Notícias que incidem sobre Gaia e o seu presidente. Aliás, Eduardo Vítor Rodrigues é um colunista regular daquele diário nortenho, tendo começado a publicar artigos de opinião desde Junho de 2020. Já escreveu 60 artigos.
A atenção do PÁGINA UM sobre os interesses de Gaia na contratação em particular da Global Media – há também contratos com o Público e a Cofina, mas de muito menor dimensão – começou em 26 de Dezembro de 2021, numa investigação intitulada “Gaia paga mais de meio milhão de euros em contratos com grupos de media através de empresa com dívida astronómica”.
Revelava-se então que a Gaiurb – com competência na gestão urbanística e habitacional de Gaia – realizara três contratos com empresas da Global Media (num total de 465.000 euros). Todos os contratos tinham sido realizados por ajuste directo, sem visto prévio do Tribunal de Contas, e contra o código de contratos públicos.
Com a Global Media, a Gaiurb estabeleceu um primeiro contrato ainda em Dezembro de 2020 para o evento “Praça de Natal Jogos Santa Casa em Gaia”, que incluía a sua divulgação “junto da imprensa e outros meios de comunicação social”. O valor do contrato foi fixado em 195.000 euros.
No dia 3 de Dezembro de 2021, o contrato foi renovado, com o mesmo fim, e pelo mesmo valor. No ano de 2020 ainda se apontavam os motivos para o ajuste directo: “não existe alternativa ou substituto razoável” e “inexistência de concorrência”. No segundo contrato nada se refere.
Estes dois contratos comerciais foram assinados por Domingos de Andrade, então simultaneamente administrador e director de conteúdos da Global Media e director da TSF, algo que o Estatuto do Jornalista considera incompatível. Este administrador e também director de diversas publicações da Global Media viria a ser alvo de um processo de contra-ordenação por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – por assinar contratos comerciais ao mesmo tempo que era director editorial e jornalista –, mas que redundou apenas numa multa de 1.000 euros.
O PÁGINA UM tem tentado aceder ao processo instaurado contra Domingos de Andrade desde o ano passado, mas o Secretariado da CCPJ – constituído pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho – têm ostensivamente recusado, numa clara violação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
Um outro contrato do grupo Global Media com a Gaiurb foi concretizado em 29 de Março de 2021 com a TSF – através da sua empresa Rádio Notícias – por ajuste directo para a produção de 26 episódios semanais, emitidos aos microfones entre Abril e Outubro. Apresentado como sendo uma “parceria TSF/ Gaiurb”, o programa foi intitulado “Desafios do Urbanismo”, e envolveu um pagamento de 75.000 euros, tendo sido conduzido por um jornalista Miguel Midões, mas sem liberdade editorial.
De facto, este contrato comercial – que possui, em nome da Global Media, a assinatura do jornalista Afonso Camões, o que constitui uma função incompatível nesta profissão – estipulava, na prática, uma subordinação editorial da TSF perante a Gaiurb.
Por exemplo, o ponto 1 da cláusula 5ª determinava que “o prestador de serviços obriga-se a entregar à Gaiurb, EM [empresa municipal] os produtos, serviços e conteúdos informativos a aplicar na execução do contrato, de acordo com as características, especificações e requisitos previstos no anexo ao Caderno de Encargos, que dele fazem, parte integrante”.
Mais recentemente, em Dezembro passado, houve novo contrato para a promoção das festas natalícias de Gaia, subindo o valor para 215.000 euros. Sempre por ajuste directo.
Mas as relações promíscuas entre a Global Media e entidades públicas, sobretudo autarquias, não se circunscrevem a Vila Nova de Gaia.
No ano passado, o PÁGINA UM detectou uma dezena e meia de contratos com entidades públicas assinados pela Global Media desde 2020. De entre estas estão, além da de Vila Nova de Gaia, as autarquias (ou empresas municipais) de Lisboa, Cascais, Valongo, Barreiro, Feira, Matosinhos, Aveiro, Viana do Castelo, Setúbal, Estarreja, Gondomar e Amarante, conforme o PÁGINA UM revelou em Maio do ano passado.
Embora estes contratos tenham, quase sempre, como objecto a promoção de eventos, na verdade acabam por ser uma oportunidade de promover políticos, uma vez que são publicados textos ou programas onde não fica absolutamente nada claro que se está perante uma prestação de serviço.
Em muitos casos detectados pelo PÁGINA UM, os jornalistas escrevem notícias condicionadas ao cumprimento dos cadernos de encargos, e até os directores editoriais da Global Media participam activamente nos eventos, sobretudo através da moderação de conferências que também estão estabelecidas nos contratos e onde os convidados são previamente indicados por quem paga. São os casos de Domingos do Amaral, como director da TSF, de Rosália Amorim, como directora do Diário de Notícias, de Joana Petiz, directora do Dinheiro Vivo, e de Inês Cardoso, directora do Jornal de Notícias.
Estas promiscuidades são já sobejamente conhecidas pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas e pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, mas sem consequências. A intervenção do Ministério Público pode vir a mudar este modus operandi que mina a credibilidade do jornalismo – até por não ser um exclusivo da Global Media.
Apesar das evidências, em comunicado divulgado hoje, a administração da Global Media garantiu que os seus profissionais “exercem as suas funções com total respeito pelas normas deontológicas do jornalismo, preservando a independência e a separação dos compromissos comerciais assumidos com entidades externas, honrando a importância das suas marcas já centenárias no panorama dos media em Portugal”.
E ainda dizem que “dentro da Comissão Executiva da GMG [Global Media] são claras as separações de funções entre as áreas comercial, financeira e editorial”, o que não corresponde à verdade.
De acordo com o Portal da Transparência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Domingos de Andrade é director tanto da TSF como da Rádio Jovem de Évora e da Rádio Caldas, tendo também uma crónica regular no Jornal de Notícias. Surge também nas fichas técnicas dos jornais O Jogo e Jornal de Notícias como director-geral editorial. Até Julho do ano passado ainda acumulava o cargo de director-editorial do Diário de Notícias.
No entanto, apesar de deter estas responsabilidades jornalísticas de topo, que implicam a definição das linhas editoriais e a coordenação de equipas de jornalistas, Domingos Andrade ainda se ocupa, qual globetrotter dos media, em funções de gestão executiva, incluindo obviamente as áreas comerciais, sendo gerente de quatro empresas (Difusão de Ideias, Lda.; Pense Positivo, Lda.; Rádio Comercial dos Açores, Lda.; TSF – Rádio Jornal Lisboa, Lda.) e de vogal do Conselho de Administração em mais outras quatro empresas (TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve; Açormédia – Comunicação Multimédia e Edição de Publicações; Global Notícias – Media Group; e Rádio Notícias – Produções e Publicidade). Todas são do universo do Grupo Global Media.
Mas o comunicado da Global Media, querendo ignorar estes factos públicos, ainda acrescenta que “os diretores das respetivas marcas (…) têm, como não poderia deixar de ser, total autonomia editorial e de gestão de recursos”.