A vida de António Costa, por estes dias, é digna de um filme. De manhã ouve as exigências de Jens Stoltenberg, à tarde toma notas enquanto Galamba é apertado na comissão parlamentar de inquérito, e depois, à noite, enquanto o seu ainda ministro faz uma pausa para um xixi, já o alegre Costa está em Coimbra, a cantar a plenos pulmões o Clocks, dos Coldplay.
Estou a imaginar, obviamente. Não sei se o Costa é forte no falsete nem o Chris Martin me mandou o alinhamento do concerto. E desenganem-se aqueles que agora esperam piadas fáceis com a loucura em volta dos Coldplay.
Por mim, desde que as pessoas ouçam música, até pode ser uma melodia do Nel Monteiro. Como diria a minha avó, só não se metam na droga.
No meio desta azáfama de António Costa, ainda deu para Marcelo – o agora atento Marcelo – passear por Belém, responder a umas perguntas de ocasião sobre o Galamba e interromper a marcha para endireitar os buracos da calçada portuguesa.
Um país onde todos, mesmo todos, temos de dar uma mãozinha e, aqui e ali, tapar um buraco. Marcelo é um de nós – e desenrascou o amigo calceteiro.
No meio do circo – sim, é isso que há uma semana vejo nos jornais –, fiquei a matutar nas palavras de Jens Stoltenberg.
Estou a poucos dias de ir ao banco receber as “boas novas” da subida explosiva do meu empréstimo à habitação e, nestas alturas, lembro-me muito dessa malta que repete, a cada pequeno-almoço, “as long as it takes”.
O amigo Jens, em princípio, não tem casa para pagar, e mesmo não querendo saber do Donbass, também não deve estar interessado em saber o quão pobre deixa a Europa no fim do seu mandato à frente da “aliança defensiva”. O seu patrão não é a Europa, de modo que tanto lhe faz se ficamos a virar mais ou menos caixotes para comer.
Na conferência de imprensa em São Bento, ao lado de António Costa, Jen Stoltenberg agradeceu o apoio português, mas disse que era preciso mais. E não foi meigo a pedir: fez-me lembrar as listas de Natal do meu filho quando tinha 8 anos. Mais caças (com e sem cedilha), mais treino, mais investimento em defesa. Ou seja, mais dinheiro desviado do Orçamento de Estado para armamento. No fundo, esteve ele a fazer o que qualquer vendedor faria, anunciando os artigos presentes no catálogo do patrão.
Portugal, nestas coisas, limita-se um pouco a fazer aquela figura do amigo simpático que oferece a casa, recebe bem, diz umas piadas e promete que, para a próxima, o vinho do jantar não é Porta da Ravessa. Temos pouquíssima relevância internacional e os nossos Governos servem, essencialmente, para gerir fundos comunitários e servir cafés a cada passagem dos senhores da guerra.
Já não seria catastrófico se conseguissem, pelo menos, gerir os fundos comunitários sem os distribuírem pelos bolsos do costume, embora julgo ser também pedir demasiado.
Portugal, boa praia, óptima gastronomia, períodos longos de céu azul… quem é que está para se chatear com estas coisas de roubos de milhões ao erário público? Temos tempo, depois da praia, se entretanto não se meter o Natal, que parece teimar em surgir, todos os anos, depois do Verão.
Estranhei que ninguém, um jornalista que fosse, perguntasse a António Costa onde ia buscar mais dinheiro para cumprir a lista para o Pai Natal elaborada por Jens Stoltenberg. Bem sei que o Governo está a nadar em dinheiro com as colectas da inflação, mas tendo em conta que os salários da Função Pública continuam baixíssimos, os impostos elevados, as creches públicas praticamente inexistentes, o SNS ao abandono e a Educação universal ainda por concluir, pergunto-me: a qual prioridade se vai roubar mais dinheiro para enterrar no Donbass?
Ninguém parece interessado em abrandar perante uma guerra que está a empobrecer o continente europeu. Percebo que os actores externos não o queiram fazer, porque beneficiam com o conflito, mas não entendo esta loucura colectiva dos povos europeus.
Estamos a empobrecer todos os dias enquanto gritamos pela moral de uma guerra que não nos pertence, e onde aquilo que se discute, já todos percebemos, vai muito para lá da integridade territorial da Ucrânia.
Depois de meses a ouvir que “Bahkmut está por horas”, a cidade acabou por cair nos últimos dias. Seguem-se outros tantos meses a planear e discutir a contra-ofensiva ucraniana, com pedidos diários de material. Mais um ano de guerra previsto por quem dela vive e a relata diariamente.
Não há grande luz ao fundo deste túnel que não seja a de continuar a viver com a inflação e o aumento dos custos de produção. Agora, se Costa quiser agradar a Jens, vamos aumentar a percentagem do orçamento para a Defesa e retirar mais dinheiro às famílias.
Repetem-se as notícias de famílias que já não conseguem pagar as suas casas ou que mal suportam o cabaz de alimentos. A miséria aumenta, enquanto nos entretemos com horas e mais horas de circo mediático em volta da comissão parlamentar sobre a TAP. Lembrem-se: aquilo servia para debater a TAP e a sua gestão; e já se desviou primeiro para as reuniões de preparação da ex-CEO com o PS, daí para as notas que incriminam o Galamba e estamos agora nas cenas de alegada pancadaria em mulheres no Ministério. Tudo num saltinho.
Com pipocas numa mão e a mini na outra, vamos formando o nosso tribunal popular e dando razão à chefe de gabinete, ao adjunto, ao Galamba ao que depois virá. Tanto faz.
Nas pausas para publicidade, entre um cigarrinho do Galamba ou uma canção da Mimicat em Liverpool, o Jens aterra em Lisboa e ordena que o governo português nos deixe, ainda, mais pobres.
Batem-lhe palmas, come bem e de borla, e vai-se embora sem que ninguém lhe pergunte, a ele ou a António Costa, como e porquê.
Já nem precisamos das papas e muito menos dos bolos. Basta-nos o circo.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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