Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 1
“A ligação de cérebros poderosos com o demonismo masculismo parece uma coincidência trágica de cadeias causais independentes; mas esta conexão implica criar problemas extremamente complexos. Os cérebros inteligentes são responsáveis por novas formas de agressão, irrelevantes para os animais sem boas memórias nem relações de longo termo.”
Richard Wrangham e Dale Peterson
DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)
Ninguém imagina o que me custou começar a escrever esta série de crónicas. Ando a adiá-la há meses – mesmo depois de ter sido enxameada por uma série de dissabores, sempre em torno do mesmo tema. Não gosto de dizer mal de ninguém. E ainda gosto menos de dizer mal de pessoas que pertencem a um mundo onde, por regra, a vida me faz feliz. Mas isto já se tornou francamente excessivo, portanto deve ser dito. Será uma hipérbole, mas toda a Bíblia é uma hipérbole, e há milhares de anos que funciona. Eu gosto de viver aqui, não é isso que está em causa. Mas viver aqui tem detalhes que, depois de todos somados… não, não mereceriam nenhum Dilúvio, porque um Dilúvio seria muito conveniente, dada a falta de água no Alentejo.
A verdade é que, mais provação menos provação, continuei sempre a gostar de viver aqui. Esse bem-estar não mudou nem mesmo depois de eu ter arranjado um stalker. E um stalker, isto sim, parece mesmo uma qualquer punição bíblica, enviada por razão desconhecida. Um stalker é uma sombra neurótica e estranha, e extraordinariamente cansativa, que não creio que nenhuma pessoa imagine que possa vir a ter depois dos sessenta anos, quando se instala para viver calmamente, e dar de si o seu melhor, numa pequena cidade do interior. Ainda por cima, é tão raro ouvirmos as mulheres que nos rodeiam falarem de stalkers, que acabamos por considerá-los personagens de filmes americanos. Nem sequer são pessoas. São mesmo só personagens. O King-Kong, o Dirty Harry, o Mad Max, o Batman: a gente não se cruza com eles na rua.
Este meu stalker é um fraca-figura que tem como profissão ir sentar-se na esplanada do Alentejano para pedir a toda a gente cigarros, cafés, bagaços, e assim. É tão mirradinho, tão silencioso, tem sempre um ar tão triste, e em consequência ocupa tão pouco espaço, que, até começar a perseguir-me, nunca ninguém tinha dado por ele, nem ninguém lhe reconhecia o nome, o que é curiosamente raro aqui na cidade. Ajudei-o a confirmar online, no portal da Segurança Social, a sua necessidade de transporte para Lisboa na segunda-feira seguinte por causa de uma consulta em Santa Maria[1], e tanto bastou para no dia seguinte ele já estar a entrar no café onde eu costumo ir todas as manhãs para suspirar em alto e bom som, “não sei o que é que aquela mulher fez, que deu comigo em doido.” E toda a gente achou graça. Eu por acaso não achei graça nenhuma porque aquilo era do mais incómodo que imaginar se possa, e, sobretudo, porque a história do nosso louco amor passou a ser um teatro que se repetia todas as manhãs. E as mensagens intermináveis dele no meu telemóvel eram todos os dias entre as dez e as vinte.
Com todos estes ingredientes, mais o seu lugar cativo no banco fronteiro ao tribunal, onde podia contemplar à vontade a porta da minha casa tal como podia contar histórias fabulosas aos taxistas, o velho transformou-se rapidamente no talk of the town[2]. Toda a gente se ria dos seus expedientes e das suas declarações de amor. No meu café, toda a gente apreciava também a sua pontualidade, pois que o velho aparecia às sete em ponto, ia lá deixar recados para mim, e acto contínuo ia sentar-se no seu banquinho. E eu não sou de ferro. Posso ter sido discreta, mas este sentido de humor mesmo-mesmo-mula dos alentejanos acabou por fazer-me rir a mim também.
Até acabei por rir[3] mesmo depois de o stalker ter destruído a centralina do meu carro durante a noite[4], depois de lhe fazer uma ligação directa para o tirar do lugar onde estava estacionado[5], mesmo à frente da minha porta[6]. Ainda hoje sorrio vagamente ao rever a cara dos polícias quando lá levei o meu telemóvel encharcado em mensagens dele, umas tristes, outras saudosas, umas quantas a jurar suicídio e outras tantas a declarar apenas que ia partir para nunca mais voltar, e todas elas ou dolorosas[7] ou amorosas[8], como se alguma vez tivéssemos formado um casal – ah, mas nunca houve testemunhas, portanto nunca se pôde fazer nada.
Até hoje, também nunca se pôde fazer nada em relação a nenhum dos dissabores que se seguiram, e não sou eu quem vai dizer que se passaram especificamente aqui porque no resto do País, ou mesmo no resto do mundo, tanto priapismo seria impossível e impensável. Mas que tem sido uma luta constante para merecer algum sossego por parte destes homens – ah sim. Chegada a esta provecta idade, tem sido uma luta sem precedentes.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Consulta essa a que ele nunca foi, pois que várias testemunhas o viram arrastar-se o dia inteiro entre a minha casa e o banco fronteiro ao tribunal. Algures, em Estremoz ou em Lisboa, os contribuintes hão-de ter pago para estar uma ambulância, ou um carro de bombeiros, à espera de um velho doente que afinal não estava assim tão doente como isso. Não é caso para dar ouvidos às barbaridades do CHEGA contra o SNS, mas é caso para usar de mais firmeza em relação a neuróticos que importunam mulheres.
[2] Que é como quem diz “a pessoa de quem toda a gente fala na cidade”, o que não seria difícil de dizer em português de forma interessante. Mas desculpem-me e deixem-me passar, estes pecadilhos de inserir amostras cosmopolitas da minha presença de espírito bilingue tomam-me de assalto assim que chego à segunda linha seja de que texto for.
[3] Sozinha, obviamente. Estas coisas não têm graça absolutamente nenhuma, nem eu quero que ninguém pense que eu lhes acho graça. Acontece apenas que, perante as calamidades, o riso continua a ser a melhor arma de defesa que eu conheço.
[4] A centralina! Estão a ver as coisas que eu sei? A centralina transformou-se numa daquelas palavras que me fazem dar um salto e olhar para trás para ver quem falou, de tal forma me envenenou a vida. A centralina é a peça que controla todo o circuito electrónico do carro. Sem centralina, um carro bem pode ser das melhores marcas e estar novinho em folha – é um carro morto, dê lá por onde der.
[5] O piolhoso é deveras entendido em motores, pois que foi motorista de camiões TIR. Aos 52 anos foi trespassado por dois balázios numa batida ao javali, e não teve outro remédio senão reformar-se. Mas continuou a juntar uns cobres, incluindo roupa à senhor importante, desempenhando as funções ilegítimas de um Embaixador qualquer que vivia aqui, viajava muito, e pagava em dinheiro. O pior foi quando esse Embaixador mudou de país, e para o seu lugar veio outro, daqueles que não alinham em futebóis. E é neste mundo que eu vivo. Batidas ao javali, balázios, empregos ilegais de alta roda, e finalmente um stalker que não recua perante nada.
[6] Só mesmo num dia raríssimo em que a pessoa consegue estacionar à porta sem um único pneu em cima do passeio é que estas coisas acontecem, como toda a gente sabe.
[7] “Nunca mais viverei em paz, tiraste à minha vida todo o seu sentido” – quando, ainda por cima, eu tinha dado à vida dele montes de bicas, de cigarros, e até de tostões para bagaços.
[8] “Clarinha, meu amor, proponho-te uma boa sessão de sexo, vais ver como voltas a gostar de mim depois de voltares a ser minha mulher” – e por acaso valeu a pena ver o olhar interdito do senhor agente que estava a atender-me a olhar para mim, “é melhor guardar essa.”