Ouve.
Ser o filho do meio de uma sucessão de guerras culturais tem destas coisas. Um karma, talvez, de saber que o irmão mais velho já cá estava e já outro mundo viu, e de reconhecer que o irmão mais novo precisa das atenções especiais de quem ainda não controla o corpo e a mente (e eu controlo?).
Do fim do século, que já não voltará, ficou o gosto do metal. Doce, áspero. Como se a cada quilómetro de auto-estrada e cheiro quente do asfalto a pressionar o peito tivéssemos a certeza que íamos lambendo postes de alta tensão na busca de um gelado Perna de Pau em cada estação de serviço. Era o progresso que sabia assim: a veneno que o nosso corpo destilava com a facilidade de quem se julga imortal (e imoral).
Estamos todos numa bolha, cada um de nós; uma bolha fechada de paranoias e gosto metálico. (E que medo se rebenta a bolha!)
Carpetes estendidas a acumular o cheiro da pele morta dos outros, feltro vermelho a fingir-se de luxo aristocrata quando as cabeças já rolaram na guilhotina, saltos altos com espigões agressivos a marcar os passos de ídolos anoréticos (e as drogas a fazerem girar o planeta), carnes obesas a rodopiar e a atrair a si o campo gravitacional da queda de uma civilização. Palhaços que de cara borratada avançam de gatas, loucos, desvairados, os únicos que com lucidez inata ilustram o esboroar das ilusões.
Comboios que passam rápidos debaixo de varandas onde uma senhora estende roupa abnegadamente num espaço exíguo, vertiginoso (não tenho mais molas), salta! E a espuma de um dia que se empurra devagar enquanto outros correm, correm, correm.
Crianças nascem como brechas de luz nestas cloacas e velhos definham em silêncio e solidão entre paredes quadradas de alvenaria, tijolo vermelho (carpetes e sangue), ossos que quebram como giz (gesso nas paredes que mancha, ressoa, o bolor a trepar até ao tecto).
A geração dos eternos adolescentes, filhos de sacrifícios humanos movidos a anfetaminas (e a guerra senhores!), comem, comem, comem tudo e não deixam nada. Sinalizam virtudes, mão no peito (canta o hino), mão no peito (diz amen), mão no peito (declama ciência), mão no peito (não ao nuclear!), mão no peito (vai de bicicleta), mão no peito (e segura o coração para que não saia a fugir, que o frágil órgão não aguenta mais inflamações de mentes que não se encontram e vermes que entram pelos ouvidos e nos dão dores de dentes).
Demasiado?
A cada música ouvimos um apelo e sentimos o gosto do ferro na terra. Viajamos. Construímo-nos em cima do que já está feito. Pré-fabricados e opiniões. Opiniões pré-fabricadas e a luz que tremeluz da televisão, do ecrã, de mais um aparelho, pequenino, médio, grande, enorme, ligado por USB às nossas vias respiratórias (compra, compra, compra).
Ouve.
Podemos deixar as coisas abrandarem? Se somos nós que corremos, dizem os entendidos que não se pode assim dizer, do pé para a mão, que o planeta tenha desatado a mexer-se mais depressa.
Se somos nós, como quando fechamos os olhos para dormir, que desligamos a existência e flutuamos em planos de sabores mais meigos, podemos deixar as coisas abrandarem.
Podemos ser o russo. Podemos ser o ucraniano. Podemos ser o inglês e o americano.
Podemos ser o italiano, o espanhol e o português.
E nada que as torres de alta tensão metálica e doce, ásperas e pesadas, nada que turbinas velozes a rasgar o vento para baterem com a tua mão no peito, nada do que elas te dizem, para que corras, é verdade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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