A decisão de não encerrar em Lisboa a festa da Jornada Mundial da Juventude, acabou por dar em festim. Alegadamente por desentendimentos entre o Governo e a autarquia de Lisboa, anunciado e não desmentido pelo Expresso, a escolha do Passeio Marítimo de Algés para um breve encontro do Papa Francisco com 30 mil voluntários foi suportado por encargos que, por agora, já superam os 2,5 milhões de euros. Isaltino Morais fez 14 contratos, a que se junta mais outro de uma empresa municipal, todos por ajuste directo. Apenas dois foram “reduzidos a escrito”, ou seja, tiveram um contrato com cláusulas e caderno de encargos. O contrato mais avultado (cerca de 840 mil euros, com IVA), que beneficiou a empresa de espectáculos Everything is New, e não teve contrato escrito.
Foi anunciado pelo jornal Expresso em Setembro do ano passado. O último evento de ontem do Papa Francisco em Portugal, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) – um breve encontro de uma hora com cerca de 30 mil voluntários –, realizar-se-ia no Passeio Marítimo de Algés, em vez de ser na capital, em um dos dois locais usados durante a semana: Parque Eduardo VII ou Parque Tejo-Trancão.
A razão, apontava o jornal do Grupo Impresa, seria uma birra entre o primeiro-ministro, o socialista António Costa, e o presidente da autarquia de Lisboa, o social-democrata Carlos Moedas. O Expresso revelava que “esse encontro [o de encerramento da JMJ] estava pensado para Lisboa, como todos os outros eventos da semana de celebrações católicas”, mas perante “dificuldades de chegar a um entendimento final com a Câmara de Lisboa, o Governo começou a olhar para outros concelhos, como Ana Catarina Mendes, ministra que tem a pasta da JMJ, já tinha sinalizado”.
O jornal adiantava ainda que o Governo “encontrou em Isaltino Morais o parceiro que faltava”, e que “sem perda de tempo e custos adicionais, toda a infraestrutura estará preparada para 6 de agosto, desde as câmaras de videovigilância às torres multimédia ou casas de banho, equipamentos que, aliás, estiveram no centro da divergência entre Governo e Carlos Moedas.”
De facto, o evento de encerramento – um breve encontro de menos de uma hora entre o Papa Francisco e os voluntários da JMJ – realizou-se mesmo no Passeio Marítimo de Algés, mas quanto à parte do “sem custos adicionais” não foi bem assim. Muito pelo contrário.
Embora o Passeio Marítimo de Algés venha a ser aproveitado para um evento extra – o Encontro Vocacional do Caminho Neocatecumenal, que bem se poderia realizar no Parque Tejo-Trancão, onde se concentraram investimentos de vários milhões –, uma hora de presença papal no Passeio Marítimo de Oeiras levou Isaltino Morais a ser bastante folgado na abertura da bolsa dos contribuintes. Ainda mais porque houve uma suposta justificação: uma alegada urgência.
Por isso, todos os contratos da autarquia de Oeiras foram por ajuste directo. E tudo à última hora. E praticamente todos sem sequer contrato redigido a escrito, mesmo quando os montantes foram elevados. Ou seja, não ficará memória do que foi contratado nem se houve algum incumprimento. Tudo no segredo dos corredores onde serpenteia Isaltino Morais e a sua equipa.
O PÁGINA UM fez uma visita minuciosa aos, por agora, 14 contratos disponibilizados no Portal Base, que totalizam 1.449.062, sem IVA. Com o imposto, sairá dos cofres da autarquia de Oeiras 1.782.347. Se se acrescentar a “empreitada de requalificação do estacionamento e zona envolvente” ao Passeio Marítimo de Algés – mais um ajuste directo, embora com contrato escrito (o que quase causa admiração), no valor de 649.509,50 para a Unikonstrói –, a factura da “birra” entre Costa e Moedas, que levou o último evento da JMJ para Oeiras, custou-nos 2.581.243 euros. Mas as contas ainda não se fecharam.
O caso mais escandaloso – por ser de montante bastante elevado – passa-se com o contrato de “aquisição de serviços de produção, gestão do recinto, apoio à montagem e desmontagem de equipamentos” dos eventos, pelos quais a conhecida empresa de produção de espectáculos Everything is New, de Álvaro Covões, amealhou 684.500 euros. O contrato foi “assinado” apenas no passado dia 21 de Julho, e escreve-se assinado entre aspas porque, na verdade, não há papéis de contrato, porque, justificando-se com um artigo muito polémico do Código dos Contratos Públicos (artigo 95º), nem sequer foi redigido a escrito.
Também de montante elevado foi o pagamento da “locação de equipamento de apoio para Host Broadcasting (televisão, rádio e jornais)” durante o encontro do Santo Padre com os voluntários da JMJ. A Câmara de Oeiras, mais uma vez sem contrato redigido a escrito, estabeleceu um contrato, apenas estabelecido na quarta-feira passada – e publicado no mesmo dia no Portal Base – de 162.600 euros com a empresa Eduardo Cunha Unipessoal.
Com um montante também acima dos 100 mil euros encontra-se ainda mais um contrato por ajuste directo – mas neste caso, houve surpresa: há um contrato escrito e assinado, embora sem caderno de encargos no Portal Base. A beneficiada foi a empresa unipessoal de Ana Patrícia Rodrigues Miranda, com um capital social de 500 euros. O contrato, assinado em 28 de Julho e com um prazo de execução de apenas cinco dias, serviu para a “execução de arranjos exteriores nos passeios do terrapleno de Algés”, por um preço de 103.685,5 euros.
Por valor um pouco inferior (95.417 euros) ficou estabelecido, no dia anterior, um contrato para a limpeza de grafites em Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada, justificando-se a urgência e o ajuste directo também por causa da Jornada Mundial da Juventude. E, claro, nem sequer foi reduzido a escrito. O beneficiário foi outra empresa unipessoal, a SLU – Sociedade de Limpeza Urbano Unipessoal, criada em Junho do ano passado por João Manuel de Castro Margalho, mas que apesar da tenra idade (o da empresa) já ultrapassa os 200 mil euros de facturação com entidades públicas, quase todas autarquias de Oeiras, Cascais e Sintra.
Ainda abaixo de 100 mil euros, o PÁGINA UM detectou ainda mais 10 contratos, dos quais se destacam três com o mesmo valor: 75.000 euros. O primeiro serviu para a aquisição de merchandising relacionado com a JMJ, “em regime de fornecimento contínuo”, e foi um contrato oferecido no dia 26 de Julho à Printshow. E diz-se oferecido porque foi por ajuste directo, sem contrato regido a escrito e também por ser este o primeiro contrato público de sempre obtido por esta empresa, apesar de existir pelo menos desde 2006.
O segundo contrato deste montante (75.000 euros) foi também para show off: “aquisição de materiais de comunicação para decoração urbana, entregues a mais uma empresa unipessoal, a Plateia Efusiva. Criada em Agosto de 2020 por Pedro Manuel Santos Neves Rodrigues, esta empresa não se tem dado nada mal com a autarquia de Isaltino Morais: desde Janeiro de 2021 já sacou, por ajuste directo ou consulta prévia, cinco contratos no valor total de 19 mil euros. Curiosamente, a Plateia Efusiva só tem mais um outro cliente público até agora: a Câmara Municipal de Setúbal, que já lhe entregou, de “mão beijada” (leia-se, ajuste directo) ou por consulta pública, também cinco contratos, no valor total de quase 130 mil euros.
Com um objectivo similar, neste caso a “aquisição de serviços de produção e implementação de materiais de comunicação”, o terceiro contrato de 75.000 euros foi entregue a uma sociedade anónima, a L2 Spirit. Estabelecido em 27 de Julho, o contrato foi, mais uma vez, “ecológico”, não se gastando nem papel nem tinta: nada foi redigido a escrito. Sabe-se apenas que tem um prazo de execução de 12 dias, mas não se sabe bem de quê. Ou nada se sabe, na verdade.
A Microsegur – que já conseguira um contrato por ajuste directo com a autarquia de Lisboa por seis dias no valor de quase 205 mil euros –, conseguiu ir buscar mais 63.980 euros por três dias a fazer o mesmo para a autarquia de Oeiras no Passeio Marítimo de Algés. Na verdade, não se sabe se foi o mesmo, porque também este contrato de “locação de equipamentos para deteção de materiais metálicos para a Jornada Mundial da Juventude” no Passeio Marítimo de Algés não foi redigido a escrito. Isaltino Morais foi ministro do Ambiente, mas parece um exagero esta busca de poupança no papel. O contrato da autarquia de Carlos Moedas, através da Polícia Municipal, sempre se fez em papel, embora com poucos detalhes porque se ignora o caderno de encargos.
Mais um aluguer de material, neste caso de cinco ecrãs led, se fez com um ajuste directo no valor de 27.500 euros, e desta vez o beneficiado foi Fun Addict, escolhida em 21 de Julho. Sem contrato redigido a escrito, claro.
Quanto ao “pórtico de entrada para Sua Santidade O Papa”, conforme consta na descrição do Portal Base, a autarquia de Isaltino Morais contratou a Bigbrand, por um preço de 25.000 euros. Um tapete de Arraiolos era capaz de ficar mais barato, e sempre se podia guardar. Onde está o contrato desta “obra de arte”? Nenhures! Mais uma vez, sem contrato redigido a escrito.
Mais um contrato também não redigido a escrito usou a autarquia de Oeiras para transferir dinheiros públicos – mais precisamente 19.740 euros – com o intuito de concretizar o “aluguer de baias e barreiras de seguranças”. Mais uma empresa unipessoal beneficiada: a Duarte Teives Unipessoal. Barato ou caro? Não ficará memória em papel do serviço.
Pela aquisição de “serviços de apoio ao controlo e vigilância, necessário e obrigatórios para a execução do plano de segurança e emergência, do recinto da jornada Mundial da Juventude” (sic), o município de Oeiras gastou mais 17.520 euros. A feliz contemplada foi a empresa Protecção Total. Para fazer o quê? Não se sabe porque não houve contrato redigido a escrito e, portanto, muito menos caderno de encargos. A descrição no Portal Base diz, porém, que o contrato tem uma duração de 20 dias, o que não bate certo com a duração da JMJ no concelho de Oeiras. Pormenores.
Descendo na lista dos contratos feitos à última hora pela autarquia de Oeiras, destaca-se também a “aquisição de 24 rádios portáteis para ligação à rede rádio de comunicações VHF digital do município de Oeiras no âmbito da Jornada Mundial da Juventude 2023”, pelo custo total de 16.344 euros. Coube à Advanced Resources amealhar o contrato, vendendo cada aparelho pela módica quantia de 681 euros sem IVA. Seria bom saber-se, através do Portal Base – que é uma plataforma de contratação pública em prol da transparência – se foi um bom negócio para o erário público, mas não dá: este foi mais um contrato sem ser redigido a escrito.
Por fim, para prestar “serviços técnicos de elaboração, implementação e acompanhamento do Plano de Segurança da Jornada Mundial da Juventude”, o município também contratou por 7.800 euros a Wise Safety, que por sua vez tinha sido contratada também para o mesmo fim pela autarquia de Lisboa. No entanto, se no município da capital houve contrato, em Oeiras prescindiu-se dessa burocracia.
Portanto, contabilizando tudo o que aconteceu em Oeiras, por causa de uma hora de festa – o encontro do Papa Francisco com os voluntários –, assistimos a um festim: 2,5 milhões de euros entregues através de 15 contratos (14 da autarquia e um de uma empresa municipal) por ajuste directo, dos quais apenas dois tiveram honras de ser escritos. Para o ano, em Portugal, comemora-se o meio centenário de uma democracia, já cortada ao meio…
N.D. O PÁGINA UM decidiu não contactar a Câmara Municipal de Oeiras, porque toda a informação factual consta no Portal Base, a plataforma por excelência da transparência na contratação pública. Considera-se que o Portal Base, gerido pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), deveria dar integral cumprimento à legislação, designadamente a inclusão de todas as peças do procedimento, como os cadernos de encargos. Por outro lado, a opção da autarquia de Oeiras por não redigir contratos públicos é, por si só, uma declaração de gestão da res publica, e portanto não carece de pedido de justificação por parte de um jornalista – vale por si mesma.