CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
“Sabes, Alexandre,” escreveu Maria Alice, absolutamente a propósito, “nunca gostei de usar sutiã, e ainda hoje evito o mais que posso entregar-me a usos foleiros e primitivos desse teor[1]. Aliás, tive sorte: são, de facto, usos de que, se não quiser, não preciso[2]. Por isso mesmo, na praia, também só não faço topless se não puder. E então imagino que, quando chegarmos lá, ali naquele banco de areia macia, ainda antes de se ficar fora de pé mas já longe que chegue da margem muito embora raramente lá esteja alguém aos dias de semana, sinto as tuas mãos nas minhas maminhas e me sinto tão feliz que só pode ser pecado.” Ao que ele respondeu, muito breve mas com toda a evidência sonhador, “Ah – mulher endiabrada.”
Os olhos cor de mel de Maria Alice cintilam de sonho, de antecipação, e, ocultamente, também de orgulho[3].
A praia a que se referiu naquela carta a esposa de António José é uma espécie de pequeno paraíso, entre os muitos que abençoam as cercanias de Estremoz. Chama-se Praia dos Montejuntos[4]. Não se indica aqui o itinerário uma vez que grande parte da graça deste oásis fluvial é o seu carácter quase secreto, mas sempre podemos ir adiantando que, para quem vem da cidade luminosa, levam-se cerca de quarenta minutos por estradinhas estreitas, quietas, quase desertas e muito belas. Este timing vale, sobretudo, para quem quiser ir saboreando bem o percurso, e – porque não – conforme comentaria Alexandre Noronha – parando – talvez – numa das aldeias mais promissoras que apareçam – nos acasos do caminho – a respeito da cerveja gelada, ou – quiçá – perante a loja encantada de artesanato – da qual – uma vez mais – se omite o nome – mas aqui antes por esquecimento do que por opção[5]. São estas paragens imprevistas, e toda esta lentidão, dentro de todo este silêncio, que vão tirando de cima dos mais derreados de todos os ombros os blocos mais duros e violentos do stress lisboeta.
Depois, de repente, a estrada começa a descer. Dois anos depois da sua estreia, ainda está mesmo a cheirar a novo, tão bem alcatroada que apetece dizer antes alcatifada. E é durante essa descida, pelo meio da sombra, que aparece de súbito a grande oval de água cristalina, de um azul que fora de pé quase atinge a beleza do verde tropical e transparente, com toldos de palha, quase todos desertos. Para lá do estacionamento grande e simples levanta-se uma varanda de madeira imponente sobre a lagoa, parte envidraçada e parte a céu aberto: é o café-bar de óptimo gosto que Maria Alice também já descreveu ao seu grande amor, onde se servem óptimos pratos e petiscos de peixe e crustáceo de rio, e se congeminam misturas alcoólicas e sumarentas perfeitas, nomeadamente os mojitos que ela adora, com as limas arrancadas das árvores vizinhas e a hortelã criada ali mesmo.
Nunca mandou nenhuma foto deste esplêndido destino a Alexandre porque respeita o código não estipulado mas perfeitamente entendido de ambos: nada de imagens. Nestes dias loucos onde toda a gente filma tudo e manda para os antípodas à velocidade da luz, aqueles dois amantes que ainda não o foram enlaçam-se apenas por carta. Longas e bonitas cartas, como as de antigamente. Com suficiente conteúdo explícito para a chama arder toda a noite. Como por exemplo, durante os últimos dias, os detalhes que vão e vêm sobre tudo o que poderão, por fim, fazer debaixo de água.
Maria Alice espera o seu amor para cumprir todas as promessas que já lhe fez para o primeiro dia na praia, mas entretanto arranjou coragem para lhe mandar o seu primeiro pequeno conto quase erótico, com a desculpa de estar a pedir um parecer masculino ao homem em quem mais confia neste mundo. A PANGEIA vai começar uma revistinha semanal com opinião, cultura, notícias, internacional, tudo englobando o mundo inteiro[6], mas tudo escrito por alguém de Estremoz. Os contos de Maria Alice entrarão na CULTURA, evidentemente. Alguém de Estremoz que se doutorou no Canadá e sabe escrever ficção. É bué fish, como ela gosta de dizer. O primeiro esforço é de três parágrafos, respeitando os dois mil caracteres com espaços decididos na reunião de redacção. Logo no primeiro parágrafo, um casal que, por razões ainda não explicadas, subitamente já não pode mais, encosta o carro numa berma à sombra e atira-se a um longo beijo vertiginoso até ser interrompido pela BT. Esse carro é um clássico estupendo, um Citroen DS verde-garrafa descapotável sem banco de trás, todo brilhante ao sol dourado do fim da tarde no Alentejo. E o casal, que é já de uma idade considerável, ia a ouvir o TOUTS[7] LES GARÇONS ET LES FILLES DE MON ÂGE em romagem de saudade.
Maria Alice é capaz de jurar que ia apenas escrever no gmail “Querido Alexandre, segue em anexo o tal conto que eu te pedi que comentasses.” Mas, ao reler o que fez, verifica – travessão – não sem alguma surpresa – que escreveu antes,
“Muito obrigada pela tua companhia das últimas semanas, Meu Querido Alexandre. Estou a agradecer-te muito a sério. A ternura das tuas mensagens aguentou-me viva quando vivia com fome e adormecia com sede, e deixou que entretanto todo este conto, que, agora sim, me faz feliz por ter conseguido escrevê-lo, se fosse montando frase a frase dentro de mim enquanto eu bulia inutilmente para satisfazer interesses que não são genuinamente meus. E estou em crer que proezas destas só nascem mesmo de relações muito especiais: ainda nem te vi, e já permitiste um pequeno milagre dentro de mim, mesmo a meio de uma das piores travessias do deserto dos meus últimos tempos. Por favor, não deixes de surtir estes pequenos actos secretos de glória depois de eu te ver. Prometes[8]?
Mesmo do fundo do meu coração endiabrado
Bloody Mary”
Enfim, a notinha não está especialmente mal escrita. Se tiver erros de composição, pois bem: isso atestará que a escreveu de jacto e não a releu, pelo que sim, é verdade[9], levou o envio dos três parágrafos profanos a sério, numa de transa profissional.
Alexandre também responde muito profissionalmente, logo a abrir com uma frase de vários travessões a indicar que o debate sobre a parte profana será melhor travado quando estiverem calmamente sentados no bar do tal paraíso fluvial que ela lhe descreveu tão bem, através de tão belas pinceladas impressionistas às quais só faltava – mesmo – o aroma. E, logo a seguir – “Oh! – Minha Querida Bloody Mary – Viveste tu no Québèc durante vinte anos!” – adverte-a de que TOUS (“de – TOUS LES GARÇONS etc. – romagem de saudade para mim – também!”) não se escreve com aquele segundo T que ela usou. No que ela concorda logo, só prova que nem reviu o texto, tanta pressa que tinha de pô-lo à prova perante os olhos dele[10]!
O pior é que Alexandre também lhe faz ver, com aquele género de segurança que é muito característica dos homens quando abandonam a seca dos outros temas e se põem, finalmente, a falar de carros[11] – oh! Céus! –
Alexandre Noronha, neste ponto, trava mesmo às quatro rodas: nunca – mas nunca – na vida – existiu um Citroen DS sem banco de trás. Todos eles tiveram – sempre – e ainda têm – um banco de trás.
E aqui, incapaz de se remeter ao mero agradecimento da preciosa correcção, Maria Alice dá luta, sublinhando que aquele DS específico pode ter sido trabalhado na oficina do fabricante de belos clássicos para ficar sem banco de trás. É-lhe necessário este detalhe para o resto da história fazer sentido, a partir do momento em que aparece a BT. Suponhamos que o carro é da mulher, que aliás era quem ia a conduzir antes de mergulhar naquele beijo-ventosa que baralhou as suas pernas com as pernas do homem, e a fez tirar as mãos do volante para as conduzir num sufoco até outros lugares, muito mais quentes, já palpitantes: uma mulher seria capaz de pensar no detalhe de criar espaço para as compras do supermercado, o que a levaria a pedir ao tal fabricante de belos brinquedos que tirasse dali o banco de trás.
“Ah!”, rosna Alexandre Noronha de volta, na margem do sarcástico, agora quase ofendido. “Então tu prepara-te – Bloody Mary! Ao supermercado – com esse carro? Vão rir – de ti!”
E ela responde logo, com um sorriso fogoso,
“Meu Querido Alexandre, tu queres que eu me prepare? Mas eu já estou absolutamente preparada!”
Aqui deixemo-nos de brincadeiras e questionemos esta estranha diferença de curso nos últimos acontecimentos.
A que será que vêm, de repente, todos estes inesperados pontos de exclamação? Inicialmente ainda seriam perdoáveis porque foram utilizados por Alexandre, grande e confesso admirador de Cesário Verde que não tem medo de ninguém. Quando se estende a Maria Alice, que nesses arroubos de entusiasmo é muito mais comedida, ainda podem justificar-se no âmbito da sua espécie ambivalente de discurso directo. Mas como é que é possível que cheguem, finalmente, a infectar até o discurso indirecto, ameaçando-o a qualquer momento, o grande tombo no mais puro dos ridículos?
Por que é que havia de ser?
Ah pois é.
Pois é.
É que já não falta nem uma semana para chegar o primeiro dos cinco dias em que combinaram que Alexandre Noronha viria a Estremoz visitar a sua Bloody Mary, e a sua Bloody Mary já tratou de todos os detalhes de que podia tratar com antecedência, além de que já pensou em todos os outros. De manhã cedo, sentada à mesa da cozinha a tomar o seu primeiro café enquanto volta a debater com a leal Josefa a questão do que servir ao pequeno-almoço, Maria Alice só tem vontade é de recomeçar a roer as unhas.
Como dantes.
“A menina não brinque com o fogo e não esteja sempre a dar essas dentadinhas nos dedos,” sorri-lhe a Josefa, atenta e compreensiva. “Olhe que eu ainda me lembro de si com dezoito aninhos, quando apareceu aí toda fresquinha e morenaça, feita namorada daquele Figurão da Orada, lembra-se?, e era quando levava a égua dele aos concursos de salto, e ganhava aquilo mesmo nas barbas dos homens, ena pá, a gente, nós-as-mulheres, a gente quase que chorávamos! Olhe que eu lembro-me muito bem. De vez em quando ainda tiro as suas taças todas daquele baú lá de baixo, para as arear como deve de ser. Até devíamos pô-las num sítio qualquer onde este seu doutor dos olhos azuis as visse, assim como quem não quer a coisa, sei lá, púnhamos no seu escritório, mas isso a menina é que sabe, agora escute. Eu lembro-me do menino António José sempre por aí a farejar mal a menina aparecia, sempre a dizer ‘acredita em mim, Josefa, vais ver que eu roubo a miúda ao Conde, olha que vais ver que eu lha roubo mesmo, olha que temos muito cavalo em comum e ela rói muito as unhas, deve precisar de um homem que a sirva melhor do que aquele atrasado mental que engoliu o garfo e diz que comprou o título mas foi, ainda por cima este ano os toiros dele são bravos demais e o Conde anda com umas trombas que ninguém chega perto, a miúda precisa é de quem lhe cante ao ouvido e a leve a umas boas festas de gente rija, aquelas africanas foram todas feitas para rir e gozar bem a vida, eu é que sei dar-lhe o que ela quer, eu é que tenho o que ela precisa de ter,” e eu “ai o menino deixe-se de loucuras, não vá cruzar-se no caminho do Senhor Conde e partir de desgosto e de vergonha o coração da sua Mãe,” e ele sempre a rondar, sempre a dizer ‘tu vais ver, Josefa, tu vais ver’, e vai daí, qual não é o meu espanto quando naquela manhã a menina me entra quase nua pela cozinha adentro, perdeu-se no corredor à procura do duche que na altura só havia cá um, ainda se lembra? Claro que lembra! Pois se ainda hoje a menina anda pela casa quase nua! E a Mãezinha do menino, que já tinha falecido nesse dia, que pena! Para acabar tudo em casamento pronto, com o casamento ela ficava feliz, não casou ela mas casou o filho por ela e fez-se justiça![12] Pois é verdade que a menina, nessa altura, até mesmo no dia do casamento em que foi toda de branco com aquela cauda de vinte metros de bilros mas com essas suas lindas pernas que mais todas de fora não podiam estar, pois era, e mais aquele decote que as gordas até deram gritinhos, vieram as Lelas cá para fora fumar e tudo, então mas então, tu queres ver que a moça vai mesmo casar sem sutiã, e o que eu ia dizer era que com aquela caloraça a menina ia toda descascada mas ia de luvas, e só tirou as luvas quando foi para ele lhe meter a aliança, e nessa altura já tinham cantado os dois um para o outro, lembra-se?, e já toda a gente chorava e portanto ninguém via, mas eu vi. É que a menina sempre teve uns dedos lindos, mas trazia sempre as unhas todas roidinhas até ao sabugo, era mesmo uma pena. E vai daí eu não sei o que é que fez no Canadá para voltar de lá com elas tão lindas…”
“Então, ó Josefa! Isto são unhas de gel, não se vê logo?”
“Pois muito bem, e então agora a menina vai pôr-se para aí a roer umas unhas de gel, por algum caso[13]? Por isso tire mas é os dedos da boca que ainda fica mas é sem eles. Ai! Credo! Mas que tonta![14]”
Maria Alice afunda-se em trabalho para não permitir ao tempo que passe devagar. Trata seriamente da horta para ter a certeza que não deixará os seus braços desenvolverem um mínimo indesejado de flacidez. Bronzeia-se pouco porque já está muito bronzeada e, sobretudo, porque de momento não tem qualquer paciência para ser observada seminua por qualquer conterrâneo. E, no entretanto, deixa todas as peças de roupa que utiliza, com os seus diferentes perfumes, ficarem por cima das cadeiras, da cama, e mesmo do chão, em total desalinho. A atitude subjacente carece de qualquer explicação para quem conheça um mínimo de psique masculina.
Quando Alexandre, finalmente, lhe bate à porta, com um ramo de flores fantástico em cada mão, o PC ao ombro, e a mala para cinco dias a assomar de dentro da caixa do espectacular BM cinzento estacionado junto ao portão, Maria Alice, a estoirar de romantismo, puxa-o para dentro, fecha logo a porta, encosta-o à parede, nem o deixa falar, e espeta-lhe com um linguado monumental[15].
Alexandre retribui, mas é evidente – mesmo para a mulher apaixonada – que não estava à espera daquilo. Ah, pois, pensa ela em pleno beijo, sem deixar de saborear a presa. Os homens, coitados. Sentem-se logo postos em causa se não forem eles quem dá o primeiro passo.
E portanto, muito caritativamente, deixa-se ela própria deslizar para a parede fronteira à dele, e dali faz o seu primeiro e autêntico sorriso, rasgado e doméstico, ao seu grande amor. E sussurra-lhe, apenas,
“Bem-vindo ao lugar mais tranquilo do mundo…”
faz sabiamente uma pausa para respirar fundo, e acrescenta, apenas,
“… querido parceiro das mornas.”
A situação lá se recompõe com esta referência ao passado, permitindo a Alexandre, por seu turno, sorrir-lhe, passar-lhe a mão pelo ombro, e murmurar, quase assombrado,
“Bloody Mary – como os anos te trataram bem…”
Alexandre está demasiado crispado para conseguir continuar logo, mas os gestos destinados a ir buscar a mala dos cinco dias compram-lhe o tempo de que precisa para ainda acrescentar, pousando a mala no chão, agora do lado de dentro da porta, que volta a fechar-se, desta vez impelida pela sua própria mão,
“… querida parceira das noites na praia.”
Maria Alice, a extuar de energia[16], agarra-lhe na mala dos cinco dias como se ela não tivesse peso e leva-a ligeira pelas escadas acima, até à porta do quarto. Ele segue-a com alguma hesitação, talvez ofuscado pela luz da rua ao entrar na penumbra do corredor. Ela agora dá-lhe só a mão, com muita gentileza para não voltar a espantar a caça, mas com a preocupação de garantir que ele não esbarra em nada pelo caminho. E é assim, com um murmúrio sobre a tal bica muito curta que jurou oferecer-lhe logo à chegada, que o conduz até à cozinha, sempre a divisão mais fresca da casa.
“Josefa,” diz Maria Alice, sem esconder minimamente a sua felicidade, “antes de mais nada, queria apresentar-te o nosso hóspede dos próximos dias, este meu querido Alexandre de quem te falei tanto.”
“Ai que o Senhor Doutor veio mesmo visitá-la!”, exclama a velhota, também ela com um sorriso feliz – e, acto contínuo, avança para o visitante e dá-lhe dois beijinhos, que ele retribui com alguma atrapalhação. “Ah,” continua a fiel empregada, “o Doutor não sei, porque nunca o vi antes, mas a menina, olhe, a menina eu digo-lhe já, de repente ficou dez anos mais nova. Valha-nos Deus, que fazem mesmo um lindo casalinho. Deixam-me tirar-vos uma foto, destas do telemóvel?”
“Desde que não ponhas no teu Instagram…”
“Ai menina, não brinque comigo, eu sei lá mexer naquelas porcarias que a menina aqui meteu!”
E assim, enquanto abafam risos, fazem os dois algumas poses amorosas para o telefone da Josefa, que depois desaparece a cantarolar o FADO ERRADO pelo corredor fora[17]. Apesar da frescura da cozinha, Alexandre tem a testa suada, mesmo depois de, a convite de Maria Alice, se sentar e apreciar a tal bela bica muito curta, acompanhada por um copo alto com água muito fresca, e por um prato do Zé Carlos Rodrigues, onde um pavão sóbrio acabou de abrir o caleidoscópio da cauda,[18] com três queijadas de requeijão fresquíssimas, chegadas há meia hora da FOLIA AIROSA[19].
“Se calhar,” diz a antiga menina das noites na praia, “devia pedir-te desculpa pelos excessos da Josefa. Ela bem se calava, mas tinha estampado na cara que não via a hora de tu apareceres cá em casa. Eu aprendi contigo que nunca é tarde para se ter um futuro feliz[20]. E depois ela aprendeu isso mesmo comigo. E sabes, para uma mulher esta é uma aprendizagem tão grande, tão importante, e sobretudo tão boa, mas tão boa, a sério, tão boa e tão boa, que vira facilmente os mais simples do avesso. Escusas de perguntar se EU, que não sou tão simples como a Josefa, fiquei indiferente. Sabes muito bem que não fiquei. És a única pessoa no mundo que conhece o meu coração. E ainda me custa acreditar que vieste mesmo ter comigo.”
Alexandre Noronha agarra finalmente numa das queijadas de requeijão. Dá-lhe uma dentada, sorri, e acena aprovadoramente.
“Então eras mesmo tu,” comenta em voz baixa, como quem partilha um segredo.
“Era mesmo eu?”
“Por favor, não fiques zangada comigo. Mas cresceste tanto, nestes vinte anos de ausência… A tua maturidade, a tua segurança, a tua disponibilidade emocional… a qualidade da tua escrita… cheguei a temer que fosse outra pessoa quem escrevia por ti, e aqui em casa estivesse outra vez a miúda que falava comigo na praia, à noite, em Santiago. Por favor, não fiques zangada. Mas é que não escrevias como a miúda de que eu me lembrava.”
“Foi com essa miúda que tu vieste ter hoje?”
Alexandre acabou a primeira queijada, e ataca imediatamente a segunda, sem disfarçar a sua gula. No piloto automático, Maria Alice tira-lhe mais um café curto e faz cair mais cubos de gelo directamente da porta do frigorífico para dentro do jarro da água.
“Não,” responde-lhe Alexandre, muito sério. “Vim ter contigo sem saber quem és.”
“Então é bom e eu fico muito feliz,” sorri ela. “Porque eu também não sei quem és.”
Senta-se à frente dele ainda dentro daquele sorriso, e ainda acrescenta,
“… mas és um gajo que ainda vai devorar a terceira queijada de requeijão que a Josefa foi buscar ao Pelourinho de propósito para ti, ou não és? Adoro pessoas com verdadeiro apetite. E isto de não nos conhecermos parece saído direitinho das fantasias eróticas daquela senhora da tua idade que ia no DS verde-garrafa. Além disso…” – pousa, pela primeira vez, a sua mão delicada, de dedos compridos e unhas discretas, em cima do punho cerrado dele – “… agora temos imenso tempo para voltarmos a conhecer-nos. Começar de novo é sempre um bom princípio. Não é?”
“Claro que é.”
Alexandre deixou ficar a mão delicada de Maria Alice em cima do seu punho cerrado, cheio de veias salientes, que agora se vão distendendo muito devagar.
Mas continua com um vago tique nervoso nos cantos da boca.
E, pronto. Já mudou de posição, e já tirou a mão.
Tudo bem, na realidade foi ele quem saiu da sua zona de conforto e se meteu à aventura pelas autoestradas, da porta do seu escritório futurista em Lisboa até à porta de uma vaga memória de juventude que foi parar a uma cidadezinha desconhecida agarrada a um castelo.
Ou até talvez esteja tenso por motivos ainda mais simples do que aquele.
Talvez tenha medo de cães.
Sobretudo de cães grandes.
Há que ver que o Júnior não pára de inspeccioná-lo desde que ele se sentou na cozinha, e os Leões da Rodésia são sempre cães impressionantes para quem está sob a sua observação pela primeira vez. O Júnior não é minimamente agressivo, mas também não mostra qualquer alegria.
Por decisão imediata e unilateral de Maria Alice, o cão fica em casa.
Alexandre entra com a mala na suite de pé direito altíssimo e tectos decorados a gesso, com os seus grandes janelões virados para a horta, diz “tens razão, isto é lindo”, leva os calções e o nécéssaire para a casa de banho, acrescenta “é mesmo como dizias, a pessoa aqui pode esquecer-se de tudo, até do seu próprio stress,” depois do que fecha a porta atrás de si e trata de encher os minutos seguintes com alguns ruídos próprios de estar ali dentro um homem. Por fim, quando sai, lá faz o favor de comentar, observando o desalinho em que Maria Alice foi deixando toda a sua intimidade perfumada nos últimos dias, “adoro este teu caos, Bloody Mary.”
Ela sorri, atreve-se a piscar-lhe o olho, tem a impressão de que ele não gostou daquelas frivolidades, é como tudo o que acontece, pensa ela, não deixa de ser estranho, já que, trocadas tantas cartas, tudo o que acontece parece estar sempre a acontecer cedo demais. Mas bem, deixa cair. São os homens, não é?
Deve ser.
Os homens precisam sempre de mais tempo. Os homens precisam sempre de mais espaço.
Ó criatura, relaxa. Eu dou-te todo o tempo e todo o espaço que tu quiseres.
Já na praia, bebem por fim os tais mojitos deliciosos de tanta frescura, e petiscam tirinhas fritas de peixe do rio, que mais frescas também nunca poderiam ser. Estão instalados principescamente[21] no tal restaurante de madeira que forma uma varanda por cima do mar e continua tão lindo e tão calmo como sempre. Alexandre, finalmente, fala muito. Depois de falar muito do seu stress, recomeça a falar muito de trabalho. Como que acordado de um sonho, faz-lhe também a ela muitas perguntas de trabalho, um pouco como já vinha fazendo no carro. Como montar um belo estaminé de software alternativo, promoção da cultura, e apoio ao domicílio, mesmo no meio de parte nenhuma e por enquanto sem patrocinadores, isso sim, a coragem e a genica – e a estaleca[22] – da sua Bloody Mary para se sair tão bem de uma aventura dessas parece-lhe fantástica, e talvez possa ajudá-la nos labirintos do mecenato, que remédio tem ele senão conhecê-los muito bem e muito por dentro, oh, o stress que é sempre, todos os dias, essa questão da publicidade.
E este teu estaminé, sabes, este bar, este peixe, estas bebidas, esta praia, isto é fantástico[23]. A pessoa passa aqui dois ou três dias e até se esquece de que o stress existe.
Sempre que diz isto, como quem compõe cuidadosamente um poema, Alexandre Noronha rememora, logo a seguir, o tempo em que os dois se conheceram em Cabo Verde.
Também não existe stress em Cabo Verde, menina.
De cada vez que ela lhe agarra na mão por cima da mesa ele repete o número da cozinha. Não protesta, mas não demora nada a inventar um pretexto para mudar de posição. “Isto passa,” pensa ela. “É tudo do stress.”
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5 e o Episódio 6 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.
[1] “Teor.” Não é para qualquer um. Esta questão nem se discute: a esposa de António José sabe escrever muito bem.
[2] Claro que é absolutamente discutível se seria mesmo necessário inserir aqui uma frase de teor assim tão explícito, mas enfim, dê-se-lhe o devido desconto. Esta mulher está agora perdidamente apaixonada, e escreve para um amante epistolar que ainda não o foi de corpo inteiro. E esta sim, esta é que é mesmo uma linda elipse, “ainda não o foi de corpo inteiro.” Ena pá.
[3] O adjectivo “endiabrada” (ou “endiabrado”, como por exemplo na frase de há três dias antes “o meu coração está endiabrado no segredo do meu peito”) é uma pérola de cultura sua, que o seu correspondente já começou a entalar de empréstimo entre travessões. Haverá, porventura, melhor prova inconsciente de amor e respeito?
[4] Também conhecida pelo nome mais finaço de Praia Fluvial de Azenhas d’El-Rei, ou pelo nome mais preciso de Praia Fluvial do Alandroal.
[5] Talvez. Lá mais para o fim da frase, se tenha instaurado algum baralhanço entre os travessões. Mas tais fragilidades são inevitáveis no discurso indirecto. Como já sabemos, os travessões são o ponto de honra epistolar de Alexandre Noronha, e de mais ninguém.
[6] A Pangeia que existiu antes de se separarem os continentes, lá está.
[7] Escrito assim mesmo, em galharda competição contra o corrector ortográfico.
[8] Maria Alice não é parva, e trata rapidamente de assinalar que este ”Prometes?” é absolutamente retórico utilizando um emoji adequado ao efeito. Escolhe uma carinha desconfiada, a meditar de mão no queixo e sobrolho franzido. Sobrolho.
[9] Mentira! Claro que é mentira! Claro que a leu e releu vezes e vezes sem conta, e que a retalhou, a modificou, a encurtou, até a notinha não poder ficar melhor sem parecer suspeita para notinha. Mas, francamente – qual é? Há azar? Não mentimos todos, homens e mulheres minimamente educados, no que toca a rever cuidadosamente o que escrevemos, antes de expormos as nossas grandes habilidades estilísticas ao escrutínio seja de quem for? Não é verdade que vai sempre existir um escrutínio, nem que mais não seja porque deixou de existir privacidade? Então vá, saiam de cima. Esta mentira nem sequer é assunto.
[10] Aaaaah, gaita! Desde os vinte anos que meto água nesta porcaria de tous ter ou não um segundo t. Para que é que me armei em boa? Ia a correr salvar o meu pai da forca, por algum caso? Era só passar ali com o corrector ortográfico francês. Ah! Raios me partam! Raios me partam! Isto nunca mais pode voltar a acontecer!
[11] Carros é diferente. Não é futebol. Futebol tem treinadores, tem prima-donas, tem penalties, agora ainda por cima tem o VAR, enfim, tem um sem-fim de potenciais discordâncias subjectivas que podem sempre, a qualquer momento, armadilhar as opiniões de um gajo. Carros não. São valores seguros. Só há estas marcas. Só há estes motores. Só há estes anos. E toda a gente sabe em que é que o diesel difere da gasolina. Um gajo que perceba de carros pode falar à vontade, e até pode fumar uma cigarrilha ao mesmo tempo, porque nunca é apanhado em falso.
[12] Referência óbvia a outro folhetim que não este, passado noutros tempos, em que a Mãezinha do Menino António José deve ter vivido uma paixão ardente com o Pai deste infame Conde da Orada que cria toiros demasiado bravos, ficou porventura desonrada quando se deixou levar atrás de promessas vãs, pois claro que o Pai deste Figurão roeu a corda para se casar antes com uma espanhola muito rica e a única coisa que salvou a pobre senhora foi a dedicação que lhe tinha o pequeno contabilista das alfaias agrícolas e terras de cultivo. Ora, na geração seguinte, roubando a namorada ao filho da puta que é filho do outro filho da puta, faz-se uma magnífica justiça poética, e a história é mais ou menos esta. Toda a gente em Estremoz a conhece.
[13] “Por algum caso” é uma forma local de enfatizar perguntas absolutamente genial. Para usar com a merecida frequência.
[14] Ao usar – também ela – não apenas um, mas mesmo uma boa dezena de pontos de exclamação de seguida, a velha Josefa permite-nos compreender que – também ela – pode muito bem ficar calada, mas a verdade é que já está que não pode nem ver a hora em que o grande amor da sua Maria Alice vai finalmente entrar ali por aquela porta.
[15] Em grande medida, está a reproduzir o comportamento observado, no tal primeiro parágrafo do tal conto profano destinado à tal revista semanal digital da PANGEIA, pela tal mulher que vai a guiar o tal DS descapotável verde-garrafa, sem o tal banco de trás para poder transportar as compras do supermercado.
[16] Extuar. Quanto à energia, escusado seria dizê-lo mas enfim, é aquela forma especial de energia que nós só podemos ir buscar ao amor.
[17] Mais especicicamente, Josefa volta a demonstrar que a sabe toda, escolhendo, como quem não quer a coisa, a passagem “… quem me dera/ ter outra vez desenganos/ ter outra vez vinte anos/ para te amar outra vez…”
[18] Um dos melhores e mais sofisticados artistas locais. A sua loja e galeria, BONECOS DE ESTREMOZ, situa-se mesmo no centro da cidade, na Rua 5 de Outubro.
[19] Recorde-se, que não se perde nada: não há um único tasco velho em Estremoz onde as queijadas de requeijão não sejam deliciosas. As do novíssimo espaço FOLIA AIROSA, numa das esquinas do Largo do Pelourinho, levam um toquezinho de limão e constituem uma inovação inesquecível. Inovação inesquecível. Bravo.
[20] Trocadilho brilhante, improvisado mesmo ali na hora, sobre o velho lugar-comum “nunca é tarde para se ter uma infância feliz”. Se Alexandre Noronha conseguiu divorciar-se “mas ainda não consigo falar-te disso, temo que toda a perversidade do mundo me engula se mencionar sequer o nome dela”, ela também o conseguirá, certamente. No futuro. Na hora de ser feliz, para que a Josefa também o seja.
[21] Foi ele que disse, simpático: “principescamente”. Mas podia estar só a sublinhar serem os únicos frequentadores do tal “espaço”. Se foi isso, felizmente, Maria Alice não fez conta.
[22] Ok, mesmo omitindo coragem, admitamos que a redundância de genica e estaleca vem do amor ao ênfase que se obtém por escrito com travessões e que, oralmente, há que procurar de outra forma. Ou que não existe redundância no uso consecutivo dos qualitativos genica e estaleca, ou que, pelo menos, não existe quando a pessoa repetiu muitas vezes a mesma ideia. Ou que nada disto conta quando a pessoa está apaixonada!, meus senhores!, já que deve ser esse o caso, e Maria Alice encontrou satisfações perfeitamente legítimas para todos os outros.
[23] É verdade, trata-se do segundo “estaminé” de Alexandre. Mas tudo o que segue será também uma repetição, e – por agora – ele já não tem muito tempo.