Um recente relatório da Entidade Reguladora da Saúde diz que em 2022 realizaram-se 15.616 interrupções voluntárias da gravidez (IGV) em Portugal, um aumento de 15% face ao ano anterior. Soubemos também que, desde 2018, se fizeram 71.651 abortos.
Perante estes dados, a primeira coisa que se ocorre na cabeça de certas pessoas é apelar ao alargamento do prazo legal para a prática de IGV, ou “repudiar” os profissionais de saúde objectores de consciência – esses malvados que se arrogam “juízes” morais e se recusam a realizar o procedimento.
Começo por fazer um esclarecimento prévio: defendo a legalização do aborto, e discordo cabalmente de uma parte da direita que, por vezes, produz grande alarido em posições anti-aborto – e que se opõe até mesmo em casos de violação. Porém, também não concordo, e me parece até macabro, que certos grupos – não satisfeitos com o quadro de despenalização do aborto até às 10 semanas (já desde 2007) – façam deste assunto constante cavalo de batalha, e que, de quando em vez, se lembrem de azucrinar a opinião pública com mais reivindicações.
Esta obsessão persistente é sintomática e paradigmática não só de uma sociedade que julga apenas ter direitos, e poucos deveres, como do cerne do movimento feminista, que alardeia ter o bem-estar da mulher no topo das suas prioridades, mas que reduz as suas boas intenções a uma luta fetichista pelo “direito” ao aborto.
Uma vez legalmente garantida a possibilidade de recorrer à IGV, como sucede há vários anos, uma preocupação genuína com as mulheres deveria manifestar-se em redor da seguinte magna questão: o que pode a sociedade fazer para evitar que uma mulher sinta necessidade de recorrer ao aborto? Não (apenas) por eventuais questões morais ou religiosas, mas por se tratar de um procedimento doloroso a vários níveis e, a todos os títulos, obviamente indesejável.
A resposta a esta questão passa indubitavelmente pela literacia, pela educação e pela contracepção, mas, deveria também passar por uma reflexão sobre os efeitos colaterais de uma cultura que promove uma sexualidade inconsequente e isenta de responsabilidades. Isto porque, nos últimos anos, estudos apontaram para uma correlação entre sexo casual e impactos negativos na saúde mental entre jovens adultos. Acresce ainda que este parece ser um problema maior para o sexo feminino, com as mulheres a apresentarem uma maior tendência para arrependimentos em encontros sexuais do que os homens.
Tendo em conta estes dados, seria lógico que, antes de colocarmos o aborto no centro da discussão – como o derradeiro recurso para prevenir uma gravidez indesejada – nos questionássemos antes sobre se a banalização da sexualidade não terá como consequência uma “sexualidade indesejada”. Seja na forma de uma vida sexual iniciada prematuramente, ou de comportamentos sexuais nocivos para a própria mulher.
Por outro lado, num contexto em que cada vez mais mulheres se debatem com o desolador e deveras preocupante problema da infertilidade, e lutam pela possibilidade de engravidar e de levar a termo uma gravidez, não deixa de ser curioso que as brigadas “pró-escolha” não tenham, sobre este assunto, uma palavra de atenção. Ou, como temos visto em Portugal – perante os crescentes casos de mulheres que enfrentam dificuldades para terem os seus partos assegurados pelo Serviço Nacional de Saúde – , os efusivos activistas “pró-escolha” remetam-se ao silêncio.
De facto, entre uma mulher que deseje abortar, e uma que deseje engravidar, apenas a batalha da primeira “faz as delícias” dos contestatários de serviço. Ao contrário do “direito” ao aborto, o “direito” à maternidade não parece, pois, constar sequer da lista de preocupações dos que se autoproclamam defensores da escolha, nem merecer qualquer resquício de indignação.
Hoje, aliás, vemos celebridades internacionais (feministas) que se denominam, com regozijo, de serem child free, como se a escolha de não ter filhos fosse sinónimo de liberdade e empoderamento, e a maternidade não fosse mais do que um pesado fardo a suportar.
Assim, é evidente que o movimento feminista “pró-escolha” tem, ao fim ao cabo, um inequívoco pendor anti-natalista. Quando o seu interesse na liberdade e no bem-estar das mulheres se resume a um intenso fervor pró-abortista, fica claro que as suas motivações se prendem menos com o superior interesse da mulher, e mais com uma vontade sinistra de assegurar que, paradoxalmente, se incorra em tantos comportamentos de risco quanto possível (instigando a promiscuidade e a irresponsabilidade) e, ao mesmo tempo, se possa, com o maior dos facilitismos, impedir um filho de nascer, invocando a autonomia sobre o próprio corpo.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.