ERC fez deliberações em Maio identificando "jornalistas comerciais" mas continua tudo igual

Contrato com autarquia de Coimbra: Expresso continua a usar jornalistas para fazer notícias pagas

man sitting on chair holding newspaper on fire

minuto/s restantes


Foi como se nada tivesse acontecido. Em Maio passado, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social identificou 14 “jornalistas comerciais” e abriu processos de contra-ordenação a sete empresas de media pela forma como cumpriam contratos comerciais com entidades públicas. Tudo ficou igual. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) mantém encartados todos os jornalistas identificados pela ERC, e os órgãos de comunicação social continuam a vender jornalistas para produzir notícias sob encomenda. Até sexta-feira em Coimbra, com a autarquia local, o Expresso mostra como se faz isto… a troco de 23.985 euros.


O Expresso continua a usar jornalistas com carteira profissional para cobrir eventos patrocinados e alvo de contratos de prestação de serviços, apesar de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) de Maio passado já ter detectado situações similares e ter aberto um processo de contra-ordenação à Impresa, dona deste jornal.

Conforme hoje o PÁGINA UM constatou, o jornalista Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) – que, aliás, através de uma empresa de comunicação, a Mad Brain, costuma fazer trabalhos ambíguos de jornalismo e comunicação empresarial em outros órgãos de comunicação social – iniciou hoje a cobertura para o Expresso do Coimbra Invest Summit, uma iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra. No lead da notícia, assinada por Francisco de Almeida Fernandes, surgindo a sua identificação como Jornalista, diz-se que “O Expresso se associa como media partner”.

Auditório do Convento de São Francisco, em Coimbra

O Coimbra Invest Summit 2023 é uma iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra – em parceria com a Universidade de Coimbra, o Politécnico de Coimbra, o Instituto Pedro Nunes e o iParque – para promover o ecossistema empresarial da região, tendo começado hoje e termina na próxima sexta-feira. Conta com a presença do ministro da Economia, António Costa e Silva, na sessão de encerramento das conferências, sendo certo que, assim, terá cobertura do Expresso como media partner.

No entanto, esta situação de media partner possui, na verdade, uma componente comercial pecuniária – ou seja, uma troca de conteúdos noticiosos por um pagamento directo feito pelo beneficiário desses conteúdos noticiosos –, o que impediria, de acordo com o Estatuto de Jornalista, a colaboração de jornalistas da empresa adjudicante (neste caso da Impresa), designadamente através de textos jornalísticos.

Com efeito, na quinta-feira passada foi assinado entre a Câmara Municipal de Coimbra e a Impresa Publishing – dona do Expresso – um contrato por ajuste directo para “a aquisição de serviços de Media Partner para o evento Coimbra Invest Summir 2023”, remetendo para um caderno de encargos que, incumprindo a lei, não foi colocado pela autarquia no Portal Base. O valor do contrato é de 23.985 euros, com IVA, e foi publicado no Portal Base na sexta-feira passada, vigorando até ao dia 6 de Outubro.

Recorde-se que em Maio passado, numa acção sem precedentes, a ERC identificou 14 jornalistas por escreverem conteúdos pagos em resultado de contratos assinados por grupos de media com entidades públicas. As relações comerciais, e tudo o que fica acordado, fica no segredo dos deuses, uma vez que não existe obrigatoriedade de publicitação.

Em sete processos abertos pelo regulador dos media, em reacção a questões colocadas pelo PÁGINA UM em Junho do ano passado, no âmbito exclusivo da sua função jornalística, após uma notícia sobre o financiamento dos media, foram analisados mais de meia centena de contratos com entidades públicas assinados por sete grupos de media (Global Media, Trust in News, Impresa, SIC, TVI, Cofina e Público), a análise do regulador foi feita de forma a inocentar as direcções editoriais dos órgãos de comunicação social.

Com excepção de Celso Filipe, director-adjunto do Jornal de Negócios (Cofina) e do director da Exame (Trust in News), nenhum outro director dos media analisados – entre os quais o Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF, Expresso, Visão, Público, SIC e TVI – foram identificados pela ERC como tendo participado activamente na execução de contratos comerciais, mesmo se, por exemplo, uma parte substancial deles participa regularmente como moderador de eventos pagos.

São, por exemplo, os casos já detectados pelo PÁGINA UM de Mafalda Anjos (directora da Visão), Rosália Amorim (directora do Diário de Notícias), David Pontes (antigo director-adjunto e actual director do Público), Manuel de Carvalho (director do Público até Maio deste ano), Inês Cardoso (directora do Jornal de Notícias) e Joana Petiz (antiga directora do Dinheiro Vivo, que foi agora dirigir O Novo).

Francisco de Almeida Fernandes é um jornalista com carteira profissional que faz conteúdos comerciais pagos e conteúdos jornalísticos, através de uma empresa de comunicação. ERC já o identificou, mas CCPJ nada fez de concreto.

Na esmagadora maioria das situações, estes directores editoriais participam como mestres-de-cerimónias de eventos patrocinados, ou seja, como moderadores. E, em última análise, são responsáveis pela cobertura noticiosa desses eventos, que em muitos casos estão previstos nos cadernos de encargos. Isto é, os directores são obrigados contratualmente a dar cobertura noticiosa, o que significa uma ingerência externa considerada ilegal pela Lei da Imprensa.

No lote dos jornalistas considerados “comerciais” – termo que não surge na deliberação, mas que o PÁGINA UM considera adequado para tipificar as acções –, destacam-se três nomes relevantes.
O primeiro é, como já referido, Celso Filipe (CP 852), director-adjunto do Jornal de Negócios desde 2018, e que já se integra na equipa editorial deste periódico da Cofina desde 2006. A ERC aponta-lhe a produção de textos para a execução de um contrato assinado com a Secretaria-Geral do Ministério da Economia.

O segundo jornalista conhecido é Miguel Midões (CP 4707), que, além de uma das vozes da TSF desde 2014 é ainda professor de Comunicação Social na Universidade de Coimbra e do Instituto Politécnico de Viseu, além de vogal do Sindicato dos Jornalistas. A ERC analisou, entre outros contratos, o pagamento de 75.000 euros para a realização, por Miguel Midões, de 15 programas radiofónicos “Desafios do Urbanismo”, entre 1 de Julho e 7 de Outubro de 2021.

man sitting on chair holding newspaper on fire

O terceiro jornalista com maior visibilidade é Luís Ribeiro (CP 3188), que trabalha desde 1999 na revista Visão, coordenador da secção de Ambiente, além de ser habitual comentador na SIC Notícias. Neste caso, a ERC apontou-lhe a autoria de cinco textos jornalísticos (incluindo entrevistas) assinados para cumprimento de um contrato com a Águas de Portugal para apoio aos Prémios Verdes, mas que estabelecia a obrigatoriedade de cobertura noticiosa e a publicação de artigos de opinião de dirigentes daquela empresa pública tutelada pelo Ministério do Ambiente.

Também o director da Exame, Tiago Freire (CP 3053), foi “apanhado” a escrever um editorial de um suplemento em cumprimento de um contrato com a COTEC. Apesar da própria Trust in News ter até admitido que “o tratamento destes conteúdos foi realizado por colaboradores com carteira profissional e por jornalistas da EXAME, sempre, em qualquer um dos casos, com total autonomia editorial”, o director foi o único identificado pela ERC.

Além destes quatro, a ERC ainda identificou – para efeitos de averiguação, para eventuais processos disciplinares, por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – mais 11 jornalistas: Rute Coelho (CP 1893), Carla Aguiar (CP 739), Adriana Castro (CP 7692), Alexandra Costa (CP 2208) – por textos publicados em periódicos da Global Media –, Filipe S. Fernandes (CP 1175) e António Larguesa (CP 5493) – por textos publicados no Jornal de Negócios –, Mário Barros (CP 7963) – por um texto publicado no Público – e ainda José Miguel Dentinho (CP 882), Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) – por textos publicados no Expresso.

O PÁGINA UM questionou, há semanas, a CCPJ sobre se as deliberações que a ERC lhe enviou com a identificação dos “jornalistas comerciais” tinha originado algum procedimento disciplinar, mas esta entidade escusou-se a responder, alegando confidencialidade. Em finais de Julho, a CCPJ fez sair uma recomendação sobre “o fenómeno dos conteúdos patrocinados feitos por jornalistas, ou dos conteúdos comerciais disfarçados de jornalismo”, assumindo ser “de dimensões preocupantes”, dizendo também que “tem atuado tomando várias e diferentes medidas para enfrentar o problema”, mas não informou sobre a abertura de qualquer procedimento disciplinar.

ERC fez deliberações em Maio identificando “jornalistas comerciais”. Tudo ficou na mesma.

Em resposta a um pedido de esclarecimento do PÁGINA UM, a entidade presidida pela jurista Licínia Girão diz que “nos termos da Lei é reconhecida à CCPJ a possibilidade de instaurar inquérito ou processo disciplinar”, sendo que “essa possibilidade de atuação é analisada caso a caso, de forma independente, sem interferências de pessoas, entidades ou órgãos alheios”, acrescentando que “os membros e colaboradores da CCPJ estão obrigados a manter sigilo” quanto às decisões tomadas nos respectivos órgãos.

Acrescenta ainda esta entidade, só será divulgado algo depois de “esgotado o prazo de impugnação contenciosa, ou transitado em julgado o processo respetivo, a parte decisória da condenação (…), no prazo de sete dias e em condições que assegurem a sua adequada perceção, pelo órgão de comunicação social em que foi cometida a infração”.

Saliente-se que, tal como sucede com a generalidade dos processos administrativos e judiciais, a abertura de processos é genericamente público, mantendo-se apenas o segredo de justiça até à conclusão do inquérito com a subsequente acusação ou arquivamento.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.