Francisco Camacho, editor e escritor

‘Todos os romances são um bocado autobiográficos’

por Maria Afonso Peixoto // Novembro 17, 2023


Categoria: Entrevista P1

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Pode dizer-se que o Jornalismo e a Literatura lhe está no sangue e no ar que respira: filho da premiada escritora e jornalista Helena Marques, e do jornalista Rui Camacho, e irmão de Paulo Camacho (antigo pivot da SIC), e de Pedro Camacho, que foi director da Lusa e da Visão. Fazendo assim jus ao provérbio “filho de peixe sabe nadar”, Francisco Camacho também teve uma auspiciosa carreira como jornalista, passando por cargos de chefia n’O Independente, Grande Reportagem, Sábado e jornal I, do qual foi cofundador. Mas em 2010 trocou os jornais pelos livros e tornou-se editor no grupo LeYa o que não surpreende, já que a sua paixão sempre foram as letras. Como confessa, só enveredou pelo jornalismo porque era foi a única forma que encontrou de ser pago para contar histórias. E é isso que continua agora fazer, através dos romances. Vai agora noseu terceiro romance, depois de um interregno de 10 anos. A pretexto de O monte do silêncio, escrito num estilo de thriller psicológico, o PÁGINA UM fala com Francisco Camacho numa entrevista onde inevitavelmente, se aborda o seu passado jornalístico e a sua visão sobre o estado actual da comunicação social portuguesa.


O monte do silêncio é o teu terceiro romance e chega com uma década de distância desde o último; um intervalo ainda maior do que os sete anos que separam a publicação dos teus dois primeiros livros. Foi por falta de tempo ou de inspiração?

Sim; eu larguei o jornalismo em 2010, e quando tive o convite para ser editor na LeYa, já tinha publicado o Niassa em 2007. E em 2010 já estava com vontade de escrever outro livro. E na altura pensei: agora que vou trabalhar no mundo dos livros, vou-me sentir mais estimulado para escrever o próximo.

E não foi assim?

Aconteceu-me o contrário. A verdade é que eu também não sou aquele autor que tem uma necessidade absolutamente compulsiva de escrever livros. Gosto de viver, sobretudo, e se possível, nos intervalos, escrevo.

Mas já chegaste a dizer que sempre quiseste ser escritor e que só foste para jornalismo porque era uma profissão em que eras pago para escrever.

Sim, mas é impossível, na verdade, porque há muito pouca gente que vive da escrita em Portugal; se é que há alguém que vive. Mas, nessa altura em que comecei a trabalhar como editor, estava tão rodeado de livros e de vozes de autores, que se tornou muito mais difícil escrever o segundo livro, A Última Canção da Noite. Acabei por escrevê-lo em 2013, ou seja, três anos depois de começar na edição. E, depois, este hiato gigantesco de 10 anos também se deve um bocado a isso; porque, às tantas, estás tão dentro das vozes dos autores que editas, que tens mais dificuldade em encontrar a tua própria voz. Por outro lado, há uma coisa muito mais prosaica: estás o dia todo agarrado ao computador a ler manuscritos, e a última coisa que te apetece quando chegas a casa, que é o tempo que tens para escrever os teus próprios livros, é sentares-te ao computador a escrever mais ainda. Portanto, isto demorou algum tempo, mas fui fazendo esse trabalho vagaroso de escrever o terceiro romance.

Para o Niassa, utilizaste muita da tua bagagem e experiência jornalísticas. Depois, o segundo livro já foi menos inspirado em histórias verídicas. Este, que conta uma história mais “mundana” sobre um jovem atormentado, é o mais ficcionado dos três?

Eu fiz três exercícios diferentes, mas todos muito conscientes. O primeiro é nitidamente um livro muito inspirado em reportagens que eu tinha feito em África, nomeadamente uma em particular, e é escrito na primeira pessoa. Com o segundo, quis fazer um romance na terceira pessoa; submeter-me a esse teste. E de todos, talvez seja o mais ficcionado, no sentido em que é menos assente na minha experiência de vida. Este, é um pouco um livro que acumula uma série de vivências que eu fui tendo desde muito novo, mas que evidentemente, muitas dessas experiências são ficcionadas. Mas acho que é o que tem mais de mim; não tem nada de jornalismo… Quer dizer, tem sempre, porque na verdade, há algumas passagens que eu só saberia escrever pela experiência que tive em termos jornalísticos. Nomeadamente, uma parte sobre um bairro muito pobre em Lisboa, Marvila, vem de uma reportagem que eu fiz para a Grande Reportagem. E essa veracidade que eu acho que consigo transmitir, vem do facto de eu ter estado lá. Portanto, o jornalismo está sempre presente; acho que vai estando cada vez menos, mas está sempre. Eu sou de um tempo em que… Esta frase até me custa dizer, porque acho que o jornalismo se transformou muito. Mas nos anos 1990, se eras jornalista e tinhas apetência para ser repórter, ias mesmo aos sítios; não havia essa coisa de fazer jornalismo de secretária. Havia os que eram repórteres, e os que não eram. Aqueles que iam atrás da notícia, e que no limite, não precisavam de sair da redação. Mas havia também o estímulo das chefias para perceber quem eram os repórteres e os tipos que eram bons para ir para o terreno e trazer histórias. E eu apanhei ainda muito isso. Acho que foi sempre aquilo em que fui melhor. Tive cargos de chefia ainda muito novo, e nessa altura passei a sair menos da redacção. Mas até então, fiz imensas reportagens e estive em sítios incríveis. Nem era preciso ir muito longe de Lisboa. Esse exemplo do bairro de Marvila fez-me conhecer uma realidade que eu achava que era impossível existir.

Este é o livro que tem mais de ti, mas não no sentido de ser autobiográfico?

Eu acho que todos os romances são um bocado autobiográficos; uns mais descaradamente que outros. Agora, há este estilo da autoficção, que está muito em voga. Mas há no livro coisas que eu trouxe ao de cima que têm um bocadinho a ver com a minha experiência, sim, como ex-adolescente, ex-muitas coisas; têm muito a ver com o meu passado. Há uma coisa engraçada sobre este livro, que é explorar muito os contrastes da sociedade portuguesa. Acho que isso é uma coisa muito relevante neste livro. Explora muito os contrastes entre as pessoas com muito poder económico, e as pessoas que não têm poder económico nenhum; as que têm a sorte de ter uma família boa, e as pessoas que têm a sorte ou o azar de terem nascido numa família disfuncional. E muitas vezes isso não tem nada a ver com o facto de teres nascido na classe alta ou na classe menos alta.

Uma das coisas que me ocorreu foi a clivagem que por vezes existe entre as aparências e o que realmente se passa na esfera privada, porque esta família é abastada, mas guarda muitos “podres” e segredos… Isso foi algo em que pensaste?

Isso é daquelas coisas em que tenho mais a resposta pronta. Eu tive a sorte de ter tido uns pais espectaculares, portanto, esse aspecto da “família disfuncional” talvez seja o menos autobiográfico. Eu sou filho de um casal de namorados até ao fim da vida, e foram uns pais fabulosos. Desse ponto de vista, o livro não tem nada a ver comigo. Mas cresci rodeado de muita gente que não teve a vida mais equilibrada, porque nasceu em famílias muito disfuncionais, e isso sempre me interessou muito: encontras estas pessoas em todas as classes sociais. E, às vezes, até acho que nas classes ditas mais privilegiadas, isto ainda tem um impacto maior, porque as coisas parecem fazer menos sentido. Se és filho de alguém que está desempregado, ou que se sente explorado no trabalho, ao fim de 20 ou 30 anos de profissão, tens uma capacidade maior de compreender eventuais comportamentos menos aceitáveis. Mas, de facto, pessoas que não tratam bem os filhos encontram-se em todas as classes sociais. Neste caso, do livro, ele não é filho; é uma mistura estranha entre sobrinho e enteado. Mas sempre me fascinou o facto de não haver nenhuma correspondência entre pessoas ou famílias financeiramente prósperas, e a felicidade e o equilíbrio. Portanto, esse falso arquétipo cai por terra. Da mesma maneira, conheço pessoas filhas de gente muito pobre que foram criadas num equilíbrio fantástico. E isto é uma coisa que está muito à vista em Portugal, só quem não quer é que não vê. Nós somos um país de contrastes sociais gigantescos. Tem uma coisa boa; se tu fores para a América do Sul, o México ou o Brasil, as classes sociais não se tocam, e aqui tocam-se. Em Portugal, estes mundos diferentes tocam-se com alguma facilidade e regularidade, e o mesmo não acontece na América Latina, onde as pessoas vivem em condomínios com metralhadoras à porta. E eu acho isso muito interessante em Portugal.

E esses contrastes e “podres” de famílias mais prósperas, foi algo que o teu trabalho como jornalista te permitiu conhecer de forma mais profunda? Porque um jornalista pode ter acesso a segredos ou dados que não estão, por vezes, tão ao alcance da população em geral…

Não; eu acho que há aqui uma parte que tem a ver com os contrastes que vi na minha adolescência. Porque eu mudei de casa muitas vezes, e ainda que nunca tenha saído do distrito de Lisboa, lidei com realidades muito diferentes entre os meus 12, 13 e os meus 18, 19 anos. É engraçado, porque eu vivi na Linha – onde hoje vivo –, mas depois fui viver para uma aldeia ao pé de Sintra, e depois fui para um sítio menos simpático de Lisboa. São apenas quatro ou cinco anos, mas são anos muito importantes na tua vida, e para mim foi muito impactante. De repente, eu estava confrontado com realidades completamente diferentes. E o narrador diz isso, aliás, é a parte em que eu mais me identifico com ele, quando diz que andou sempre com um pé em cada realidade, e que está grato porque cresceu muito por causa disso. E eu também acho que cresci muito com isso; hoje, tenho uma grande facilidade em estar confortável em qualquer ambiente. Esses quatro, cinco anos da minha adolescência forçaram-me a viver em realidades muito diferentes, e acho que essas realidades estão muito espelhadas no livro. Quando falas do jornalismo, na questão dos segredos e dos podres, acho que não. Esses “podres” que estão reflectidos no romance, de uma classe privilegiada que parece sistematicamente impune e que não é “trazida à pedra” pelos seus erros, pecados e perversões… Aí, basta ler os jornais; sou eu como um cidadão, que observa a realidade portuguesa. E eu acho que isso é uma das coisas que mais tem destruído uma certa crença neste país. Nós somos da geração do Sócrates, que nunca mais é condenado. E este pequeno, grande exemplo é muito importante para uma certa moral colectiva que fica abalada. E é isto que está reflectido no romance, saber que há pessoas que andam por aí e continuam a ter uma vida absolutamente normal e que, no limite, para as gerações mais recentes, em que depois se começa a esbater a questão do Sócrates… E é como se o crime compensasse. Porque não sermos golpistas ou vivermos de esquemas menos claros? Se isso não nos traz grandes adversidades…

Também há um tema que já estava presente nos romances anteriores, que é o dos desaparecimentos e um clima de mistério. Este livro é, aliás, uma espécie de thriller psicológico, com a morte de uma personagem no centro do enredo. Tens uma predileção por este estilo literário?

Pois, isto é um bocado um fetiche meu, a coisa dos desaparecimentos; acho apaixonante. Desde miúdo que leio livros e vejo séries e filmes sobre desaparecimentos, e acho uma coisa incrível: como é que alguém de repente se “desmaterializa” e aquela presença desaparece… E sim, é algo que está nos três livros. Costuma-se dizer que os autores têm as suas marcas. Tenho a certeza que nos próximos dois ou três vai haver alguém desaparecido nos meus livros, não consigo escapar isso; é mesmo uma paixão que eu tenho. E o tema da pedofilia está também presente no livro porque eu como jornalista fiz também várias coisas sobre pedofilia, e foi uma coisa que me impressionou sempre muito. Quando se fala, por exemplo, da mãe do Rui Pedro ou os pais da Maddie, eu costumo dizer que não deve haver tortura maior, mais do que morrer um filho é desaparecer um filho; porque nunca fazes o luto, nunca tens um corpo do qual te possas despedir. E essa expectativa do reaparecimento, que eu acho que nunca desaparece, deve ser a pior tortura que o ser humano pode experimentar. E isso também está no livro.

Foste jornalista durante muitos anos e até assumiste vários cargos de chefia, mas como disseste, a tua ambição sempre passou sobretudo pela produção literária, que requer maior sensibilidade e uma vertente mais artística. Assim sendo, e se nunca te interessaste realmente por notícias, alguma vez te sentiste como um “peixe fora d’água” no jornalismo?

Sim, sim, completamente. É uma excelente pergunta, de facto; senti-me muitas vezes “peixe fora d’água”. Nomeadamente porque em alguns colegas meus sentia um grande entusiasmo pelas notícias, pela agenda, e pelo dia-a-dia, que eu não conseguia sentir. Porque aquilo que sempre mais me entusiasmou no jornalismo foi a possibilidade, dizendo de uma maneira simplista, de “ver, ouvir e escrever”.  

As reportagens?

Sim, as reportagens. Eu acho que, pessoas como eu – e eu sei porque a minha mulher é igual, e também é escritora e era jornalista – fomos parar jornalismo, porque era a profissão que pagava para contarmos histórias. Ainda bem que há pessoas que vibram com notícias e que estão interessadas em perseguir aquela notícia ou história; e no fundo, acho que é isso que tem mantido o jornalismo vivo. Mas actualmente, acho que já pouco se lê reportagens. Há alguns meios de comunicação que ainda apostam nisso, e gosto, por exemplo, do Observador. Penso que fazem isso bem; é um jornal que eu gosto muito do ponto de vista do tratamento da informação, mas não gosto tanto do ponto de vista da Opinião. Acho que aí, é até lamentável. O trabalho que os jornalistas fazem no Observador é muito bom, mas na Opinião acho mau mesmo.

É muito ideológico?

Eu não tenho nada contra o ideológico, até prefiro um jornal que se assuma de uma maneira ou de outra do que um jornal que não o faça. Aliás, é uma tradição em Inglaterra, Espanha, França ou Itália os jornais assumirem-se como de direita ou de esquerda, e acho muito bem que o façam. Mas a meu ver, a melhor direita portuguesa não quer escrever no Observador. Não estou a dizer que sou de esquerda ou direita, mas sim que a direita que eu acho que faz falta, e que de alguma forma deixou de ter representatividade no Parlamento, não se revê na Opinião do Observador. Portanto, isto não é apenas o ponto de vista de alguém que é de esquerda, que até sou. Seja como for, o Observador faz jornalismo muito bom, e tem feito por manter a reportagem viva, e também na questão dos podcasts… Aí, tem sido um grande bastião do jornalismo, sem dúvida. Mas tudo isto desapareceu um bocadinho, porque a reportagem é uma coisa que requer dinheiro e investimento. O Público, com certeza que também o faz. Mas também me entristece ver, por exemplo, casos como o Diário de Notícias; como é que eles hoje vão fazer reportagens? As coisas mudaram drasticamente em 10 ou 15 anos.

E como é que vês essa mudança no jornalismo, desde que saíste?

Vejo com alguma tristeza, mas não sou só eu. Eu estive lá e fiz parte desse mundo, mas sinto que as pessoas que nunca foram jornalistas e sempre leram jornais, sentem algum desencanto com isso.

Pois, o jornalismo está realmente em crise, numa situação muito frágil…

Está completamente em crise. Deixou de ser um negócio altamente atraente, como nos anos 90. Eu tive a sorte de fazer parte de projectos muito interessantes, mas enfim, a vida é o que é.

Francisco Camacho com a mulher, Dulce Garcia, também escritora e antiga jornalista.

Sim, e alguns desses projectos, como o Jornal I, do qual foste também cofundador, têm vindo a decair bastante nos últimos anos. É particularmente triste para ti, como alguém que ajudou a lançar o jornal?

Sim, causa-me alguma tristeza. O jornalismo requer investimento, e quando não há esse investimento, é impossível fazer jornalismo bem. As redacções estão depauperadas, não há nenhum investimento em qualidade. E eu percebo que não haja; não estou a dizer que se devia fazer as coisas de outra maneira, eu não sei qual é o segredo. É um facto, e só estou a constatá-lo. O jornalismo era um negócio muito atraente para alguns investidores, e deixou de o ser. Portanto, dá-me a ideia que hoje, as pessoas que têm jornais, ou têm um projecto político, ou têm projectos que eu não consigo classificar quais são; mas têm sempre uma agenda qualquer. E antigamente não, era como teres uma padaria ou uma fábrica de cortiça; se dá dinheiro, dá dinheiro, e dava, sendo um jornalismo livre na mesma, sem necessidade de grandes interferências da administração. Claro que os próprios directores dos jornais tinham um poder que já não têm hoje; podiam bater o pé às administrações, porque os resultados eram bons.  

Nós no PÁGINA UM somos muito críticos do jornalismo actual, e é por esse motivo que existimos… Qual dirias ser o principal problema que o jornalismo enfrenta?

Eu acho que a origem dos problemas é falta de dinheiro. Porque assim não conseguem contratar bons profissionais, ou pelo menos, os melhores profissionais. Acho que há muita carolice nos jovens jornalistas, ainda bem que existe; portanto, muita gente que está no jornalismo está por convicção.

Mas a falta de dinheiro também se deve à queda na procura de jornais…

Eu quando, por vezes, sei de jornalistas que estão agora nos 20 e tal ou 30 anos e que recebem o mesmo que uma empregada doméstica, a única coisa que eu posso achar é que eles estão lá por convicção e porque adoram o que fazem. Mas, mais tarde ou mais cedo, quando essas pessoas tiverem filhos e outras responsabilidades, é inevitável que deixem o jornalismo. E quem é que vai sobrar para fazer jornalismo? Isso preocupa-me.

E neste momento, não vês uma saída para esta questão? Uma luz ao fundo do túnel?

Não, não vejo uma saída; porque também me custa um bocadinho estar com um discurso que é utópico, de dizer que devia ser assim ou assado. No fim do dia, tem de haver público que financie, e isso significa haver investidores e publicidade a pagar os jornais. Quando isso acontecer, é evidente que um órgão de comunicação estará mais próspero, fluente e mais poderoso, nesse sentido. Mas quando se tem as notícias de graça, e inúmeras fontes a que recorrer sem ter de se pagar um centavo, acho complicado dar a volta. Claro que tenho as minhas utopias, como toda a gente. Posso dizer “não, eu acredito que as pessoas estão dispostas a pagar por jornalismo de altíssima qualidade”, mas não sei se é exactamente assim.

Ainda continuas com um olhar atento e jornalístico em relação à actualidade? Ou passados estes anos todos, já despiste um pouco essa pele?

Eu acho que no meu livro se percebe que ainda sou um jornalista. Quando digo coisas como a epidemia de droga que houve nos anos 80 e 90 está esquecida, e que as pessoas têm dificuldade em recordar isso. A quantidade de famílias que ficaram altamente marcadas por essa questão, e que já não se ouve falar disso, parece que isso desapareceu. É como se daqui a 20 anos se deixasse de falar da covid, e esse assunto desaparecesse.

Parece que hoje “corre-se” de uns assuntos para os outros, e perde-se, por vezes, a continuidade de alguns temas importantes.

Exactamente. Quando no livro falo, por exemplo, dos imigrantes, não falo na Costa Vicentina, mas qualquer pessoa minimamente atenta percebe que estou a falar na Costa Vicentina. Isso também é jornalismo, de alguma forma; está em mim. Não me vejo a escrever um livro completamente desligado da realidade, e isso tem a ver com o meu lado jornalístico.

E, ainda para mais, cresceste numa família de jornalistas [risos].

[risos] Sim, venho de uma família de jornalistas: o meu irmão, o meu pai, a minha mãe…

Falavam muito de notícias em casa?

Zero. Aliás, houve uma altura em que o meu irmão Pedro era director da Visão, eu era editor executivo da Sábado, e o meu irmão Paulo era pivô da SIC, e nós nunca falávamos de jornalismo em casa. A minha mãe já estava reformada… Mas não, nunca falávamos. Quando vejo uma entrevista do Ricardo Costa a dizer que não fala com o irmão sobre política, acredito que seja mesmo assim, porque eu percebo isso. Tem de haver uns certos limites.  

Mas eu imaginaria um ambiente um bocado frenético, numa família de jornalistas [risos].

Quer dizer, nós falávamos de actualidade, tínhamos discussões em casa. Por exemplo, a minha mãe sempre foi muito simpatizante de Israel e da causa judaica. E lembro-me dela ser confrontada por nós sobre o que Israel estava a fazer aos palestinianos, e enfim, nem tínhamos chegado ao extremo de hoje. E havia ali uma certa tensão.

Tinham visões diferentes?

Tínhamos, sim. Portanto, falávamos da actualidade, mas não falávamos do funcionamento dos sítios onde trabalhávamos. Quando o meu irmão Pedro era director na Visão, e eu estava na Sábado, era impensável eu estar a trocar cromos com ele sobre qual seria a história de capa, ou algo do género; ainda por cima numa altura em que as news magazines vendiam imenso… Isso não, nunca aconteceu.

Ser editor, apesar de tudo, é um trabalho mais tranquilo do que ser jornalista?

Não, é diferente. Eu como editor, trabalho 24 horas por dia. Ou seja, tenho sempre a cabeça nos livros que eu quero fazer. 24 horas será exagero, porque também tenho de dormir, e não sonho com isto [risos]. Mas é um trabalho mentalmente mais absorvente.  Não tenho é aquela coisa que eu acho que me fartei, que é estar agarrado à agenda não sei quantas horas por dia. E isso é uma coisa que eu não quero voltar a fazer; só se tiver de ser. Na verdade, eu tive uma experiência de um jornal diário, que foi o I, mas eu sempre trabalhei mais em imprensa semanal, ou até mesmo mensal, na Grande Reportagem.

Não tens saudades de ter de estar sempre em cima dos acontecimentos?  

Não; tu como jornalista tens de estar sempre em cima dos acontecimentos que te atraem, e dos outros todos. Tens de estar em cima de tudo, e isso é uma coisa que, enfim, não me apetece muito.

Daqui para a frente, podemos contar com livros teus com maior regularidade, ou é impossível de prever? [risos]

Eu quero. Tenho tido um feedback fabuloso deste livro, que não tem muito a ver com o impacto no mercado, mas tem a ver com aquilo que as pessoas me dizem. Mas também tenho a capacidade de perceber que há 10 anos, quando lancei A última canção da noite, não havia redes sociais. Portanto, a comunicação é completamente diferente. Agora recebes tudo “em carne viva”, e pessoas que não conheces de lado nenhum mandam-te mensagens, “whatsapps”, e coisas através do Instagram e do Facebook a dizer que adoraram o livro. Eu tento também filtrar isso, mas é evidente que tem impacto. O meu principal objectivo neste livro parece cumprido. Isto pode parecer um objectivo um bocadinho modesto, mas na verdade, o que eu quis foi que as pessoas se agarrassem ao livro e não o largassem. Quis envolver o leitor. E tenho ouvido muitas opiniões, umas pessoas gostam menos e outras gostam mais, mas todas me dizem mais ou menos o mesmo: “comecei a ler aquilo num dia, e dormi menos para ler o teu livro”…  

Esse é o melhor feedback, para ti?

É, porque tem a ver com os meus objectivos. Não tive a pretensão de escrever um livro em que as pessoas começassem a pensar, por exemplo, no seu papel no mundo. Eu quis foi que as pessoas se mantivessem fortemente ligadas ao livro enquanto o estivessem a ler.  E isso para mim é muito bom. Até porque eu acho que nós em Portugal temos aqui um problema complicado com o mainstream, com o “meio”; e acho que isso acontece também com a Música, com o Cinema. As coisas são muito radicalizadas e concentradas em dois lados – há uma literatura intelectualizada, um bocado de nicho, e depois há um lado, nessas várias manifestações artísticas, que é carimbada como sendo comercial, ou “light”, o que queiramos chamar. E há problema com o mainstream, com aquilo que os ingleses e os americanos chamam quality fiction, em que um texto tem de ser irrepreensível do ponto de vista formal, mas sem grandes pretensões literárias. Depois, no fim, até pode ser considerado literariamente uma coisa bem feita, mas não existe essa pretensão a priori. E à minha modesta escala, quero contribuir para que isso deixe de ser assim, e que as pessoas se sintam entusiasmadas a ler um livro porque estão agarradas à história e não a um discurso. Eu não pretendi discursar para as massas, mas sim escrever uma boa história, e acho que terei conseguido o meu objectivo.

Sentias que havia uma falta deste género de livros?

Não posso dizer que tenha feito isto de uma forma consciente para colmatar uma falta. O que eu acho é que isso falta em Portugal. Tenho pena que o Francisco José Viegas não escreva mais, ou o Miguel Sousa Tavares. O João Pinto Coelho escreve bastante e gosto imenso dele, o João Tordo também escreve muito bem.

Temos muitos escritores de qualidade…

Temos qualidade, mas estas pessoas que estão aqui neste “meio” que refiro não me parecem muito bem-ditas. Há muito nicho, acho que a literatura em Portugal está muito metida em pequenos enclaves. Ou seja, tens pessoas que escrevem belissimamente e que cada livro revoluciona quase a linguagem, mas eu acho que antes de chegarmos a isso temos de fazer outras coisas. Uma vez, um editor espanhol disse uma coisa interessante, que não sei se é certa ou errada, mas que me fez pensar. Ele disse que em Espanha, tinham escritores que cada vez que escreviam um livro, vendiam imenso, porque estavam a contar histórias às pessoas; e que parecia que nós, escritores portugueses, estávamos no exercício permanente de nos desligarmos das pessoas, e de fazer qualquer coisa que não chega ao cidadão comum. E para mim, uma das grandes funções da literatura – nem queria usar esta palavra porque às vezes parece uma coisa pretensiosa –, é chegar às pessoas. Independentemente de ser um professor universitário ou uma cabeleireira, não interessa, porque todas as pessoas estão abertas a ler uma boa história.  E acho que há muita gente em Portugal a escrever para uma elite que ainda por cima é uma que não é exactamente palpável, nem se percebe bem quem é essa elite.

Colocam-se numa espécie de pedestal?

Sim, e é tudo difícil… “Epá, gostei imenso do livro do não sei quantos, mas aquilo custou-me imenso a ler”. Acho bem que essas pessoas continuem a existir, porque, no limite, vão abrindo um certo caminho, mas é como se nós quiséssemos ir directamente da primária para o mestrado sem passar pelo secundário. E eu estou bem no secundário.

Não tens pressa de chegar ao mestrado? [risos]

Não tenho pressa nem quero chegar lá. Acho que é importante contarmos boas histórias, e um bom romance é uma narrativa, é contar uma história, e não um discurso. São coisas diferentes, e há lugar para tudo, eu sei. Uma vez, no Público, há uns anos, classificaram-me como um “narrador”. E eu fiquei todo contente, porque é mesmo isso que eu sou, gosto de contar histórias. Agora, não confundamos; quando dizem que o meu livro é um policial… Quem o ler, vai perceber que é muito mais do que um policial. Hoje, diz-se um “thriller”, mas acho que é muito mais do que isso. A questão da intriga sinuosa é apenas o motor para que as pessoas avancem no livro. Há ali um assassinato no início, mas se formos a ver, é o que menos importa para a história [risos]. É um estratagema para que as pessoas se mantenham agarradas à história. É engraçado, porque não era um livro do qual eu estava absolutamente seguro que resultasse, mas é engraçado ver a reação das pessoas que, de facto, se sentem muito compensadas, e não dão o seu tempo como perdido. E isso é muito bom.

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