Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
7 – Sobre a incivilidade dos motoristas brasilienses
Mal deixei o estacionamento do jornal, passei pelo quadrado e cinzento prédio do Tribunal de Justiça. Imaginei que, àquela hora, os corredores deviam estar cheios de advogados, juízes, promotores, prisioneiros, acusados, acusadores, réus e depoentes – a escorregadia e bolorenta fauna que vive desse obscuro negócio chamado justiça.
Certa vez, um gatuno me deu uma esclarecedora definição:
– As justiças são duas. Tem a de primeira classe, que protege os que têm dinheiro; e a de segunda, que ferra os pés-rapados.
– Você esqueceu a justiça de Deus – ponderei.
– Essa não funciona mesmo – respondeu ele. – Você já leu o livro de Jó?
Convém adiantar que o meu interlocutor era um larápio de setenta anos, que entrevistei para uma reportagem nostálgica sobre o tempo em que havia certa dignidade no crime, enfim, quando bandido era bandido e polícia era polícia.
Numa cela superlotada de uma delegacia no Guará, depois de me relatar como se iniciara, ainda menino, a bater carteiras nos bondes do Rio de Janeiro, ele lamentou:
– Agora a coisa tá ruça! Já não existe mais ladrão. Só tem assassino. Todo assalto é arrematado à bala. Se o assaltado tem grana, leva um tiro na boca pra não falar depois de morto. Se não tem, leva dois pra ficar esperto.
Olhando para o Tribunal de Justiça, visualizei mentalmente milhares de processos amarelando em salas mal arejadas: milhões de páginas de péssima literatura servindo de alimento às traças.
A Justiça é mesmo uma grande e custosa brincadeira. Como se sabe, no final das contas, só uns poucos processos são julgados. E nesses casos julgados, raros são os condenados. E dos condenados, são raríssimos os enjaulados. Todos pobres.
Dizem que no Brasil, de cada cem criminosos conhecidos, só vinte são denunciados e apenas um vai para o xadrez. E um cínico acrescentaria que esse único encarcerado é, em geral, inocente.
Não, eu não acredito nesses papos. Isso é coisa de comunista. Eu amo meu país assim do jeito que ele é. Tem um pouquinho de privilégio para os ricos? Tem. Mas, no fundo, no fundo mesmo, esta é uma nação verdadeiramente democrática. Sou um idealista ideológico. Ou um ideólogo idealista. E dos esperançosos.
Eram duas e meia quando, a meditar sobre essas elevadas questões, entrei dirigindo a quarenta quilômetros por hora no Eixo Monumental. Os motoristas que vinham atrás, indignados, cravavam o dedo na buzina. Mas eu, nem bola. Seguia no meu ritmo, impassível. Não podia correr porque meus pneus estavam totalmente carecas e eu precisaria de, no mínimo, uns duzentos metros para frear no asfalto molhado.
Logo que conseguiam sair da minha cola, esses motoristas incivilizados me ultrapassavam então, em alta velocidade, buzinavam, gesticulavam obscenidades, cuspiam palavrões. Conhecedor das linguagens labial e braçal, entendi que mandavam recados desaforados à dona Mimosa, gentil senhora que me trouxe a este mundo cão. Mamãe, que é de família alemã, nasceu em Não-Me-Toque. É não-me-toquense da gema.
Minha pobre genitora, indiferente aos desaforos, àquela hora devia estar curtindo a sesta na nossa cidadezinha perdida no Pampa, a dois mil e quinhentos quilômetros dali.
Passei de novo pela Estação Rodoviária, mas não olhei para a plataforma. Tive medo de dar de cara com um novo engavetamento e mais presuntos. Para os padrões do jornalismo policial, sou um profissional delicado: não aguento mais do que uma tragédia por dia.
Mais adiante, surgiram os prédios dos ministérios, alinhados como gigantescas caixas de fósforo. Verdes. Dentro deles, milhares de sujeitos – bocejando – lutavam bravamente contra a sonolência pós-prandial.
É dura a vida dos funcionários. Não é moleza ter que redigir, carimbar, protocolar e catalogar milhares de documentos. Ainda mais quando sua única finalidade é o arquivamento. Ou a lixeira, anos depois.
8 – Teoria sobre o desgaste das palavras
Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.
Na frente do Palácio do Planalto, virei à direita. Um soldado de guarda, arma na mão esquerda, tentava com o indicador direito capturar qualquer coisa perdida no interior de uma narina. Botava muito empenho naquilo. Parecia ser um jovem muito decidido.
Um rapaz que limpa a fossa nasal com tanta determinação – conclui – é capaz de dar sua vida pela pátria. Sem vacilar.
A chuva diminuía. Um cheiro bom de terra molhada invadia o carro. Tomado de forte excitação telúrica, botei a cabeça para fora e berrei:
– Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais? Doidices do Medalhão!
Mas e se fosse verdade?
Respirei fundo. Algum preparo eu tinha. No ginásio, mergulhei de cabeça nos romances policiais norte-americanos e europeus. Li tudo que pude.
Neste ponto, devo reconhecer que nunca li nada de filosofia. Meu pai me disse certa vez:
– Livro de filosofia? Pra quê? Se um sujeito é suficientemente esperto pra descobrir um bom modo de viver por que vai falar dele aos outros? Guarda pra si o segredo desvendado. Só os escroques dão receitas, todas fajutas.
Cheguei, enfim, ao Imperial Hotel da República.
Terminada a chuva, o solzão brilhava lá em cima. A paisagem resplandecia, luminosa. Estacionei o “Revolução de Maio” à sombra do arvoredo e desembarquei. Gostosamente, enchi os pulmões com o ar úmido porque, dali a minutos, o ar estaria seco novamente. Atravessei o pátio em direção ao saguão penumbroso.
Enterrados no aconchego de amplos sofás de couro, jiboiavam uns dez sujeitos engravatados. Estavam na pose típica de quem comeu com dinheiro do governo: pança estofada, olhos sonolentos e beiços caídos.
Encarei um por um. Nenhum tinha jeito de escritor. No máximo, seriam rabiscadores de petições. Nenhum trazia nos olhos aquela chama de loucura que – achava eu – caracteriza os grandes romancistas do crime.
De gravador a tiracolo, já ligado, dirigi-me à portaria. Por trás do balcão, havia um sujeito pálido como defunto e de traços absolutamente impessoais, como todos os que atendem em hotéis do mundo inteiro. Recebeu-me com a mais gelada das cortesias:
– Pois não?
Seus olhinhos espertos deslizaram pela minha calça jeans, passearam pela minha camiseta de discutível limpeza, subiram para os meus cabelos desgrenhados e se fixaram, por fim, na minha barbicha rala.
– Gostou do tipo que eu faço, rebelde sem causa? – perguntei.
– O doutor deseja o quê? – retrucou, impávido, o cadavérico.
– Falar com o gerente desta espelunca.
– O senhor Batota não se encontra no momento. O doutor poderia me adiantar o assunto que deseja tratar com ele?
– Não! Se te adianto o assunto, acabo gastando os vocábulos.
– Interessante essa sua tese sobre o desgaste das palavras – debochou, impassível, o branquelo.
– Não tente plagiar! Já a registrei em cartório. Mas onde anda o nosso lusitano? Estará a vestir as peúgas? Ou estará a embarcar em um comboio?
– Por acaso, não – disse o porteiro. – Ele já está chegando aqui.
Mal ele pronunciou a palavra aqui, senti que uma senhora mão gorda e forte circulou meu frágil pulso direito. Uma força hercúlea comandava aquela manápula, áspera como lixa, dotada de dedos curtos e grossos, como se recortados de um cabo de vassoura.
Lamentei ter um punho tão delicado. Se tentasse me livrar do aperto, poderia quebrá-lo. Lembrei que o pai vivia insistindo para eu praticar esportes a fim de fortalecer os punhos, mas eu, preguiçoso, sempre me esquivava:
– E onanismo, pai? Não é esporte?
Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.
9 – A paixão do narrador pelos diálogos tenso
Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.
Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso -, ele continuou:
– Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?
A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:
– Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.
– Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?
Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.
Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.
– Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?
Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?
Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.
Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?
É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.
Suspirei fundo.
Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.
Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:
– Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.
– Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.
Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:
– Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…
– Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.
– Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?
– Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.
– Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.
– O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.
– Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?
– Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).