Título
Do que não existe: Repensando o cânone literário
Autora
ANNABELA RITA
Editora (Edição)
Manufactura (Julho de 2018)
Cotação
20/20
Recensão
Do que não existe é o segundo livro de uma trilogia dedicada ao Cânone Literário no diálogo das Artes (Luz e Sombras no Cânone Literário, 2014; Do que não existe. Repensando o Cânone Literário, 2018; Perfis & Molduras no Cânone Literário, 2018) que Annabela Rita fundamenta também em duas obras atentas à sua emergência cultural e às relações entre o imaginário português e o europeu em que se inscreve (Sfumato. Figurações in hoc signo. Na senda da identidade nacional, 2019; Sfumato & Cânone. Na senda da identidade nacional, 2021).
Para Aristóteles, a matriz da poesia consiste na imitação do real, e ao poeta atribui a função de contar o que é possível, de acordo com o princípio da verosimilhança. No Século das Luzes, Alexander von Humboldt (1799) atestava, categoricamente, o papel da poesia enquanto arte realizada pela linguagem. Na Antiguidade romana, ao aludir ao universo da poesia, Horácio frisava a sua inter-relação com a pintura – ut pictura poesis. Muitos teóricos literários contemporâneos, como Paul Ricœur (t.II. 1984) ou Linda Hutcheon (1991), sublinham o facto de a literatura coeva exibir – subtil ou ostensivamente – indícios da própria génese, apontando para a materialidade do discurso em imagens autorreflexivas e pondo em causa a ontologia do universo (re)criado.
Como numa dança infinita, Do que não existe exibe uma performance das vivências ancestrais da Humanidade. A Professora Universitária discorre sobre a literatura e a sua imbricação nas artes, em geral. Assenta na universalidade e na gramática sistémica, que tem a faculdade de (re)criar e evidenciar uma forma de ser no mundo, palavras que tomo de empréstimo a Heidegger. Ora, se o verbo é palavra de ação, como o classifica Aristóteles, o Verbo de Annabela Rita é sinónimo de reflexão, pensamento e crítica. De uma ação que se traduz numa longa caminhada em torno e em prol das artes.
Na esteira de críticos como Laurent Jenny (1979) ou Umberto Eco (1991), defensores da teoria de que os textos sempre convocam outros textos, assumindo relações dialógicas entre si, a autora relembra que os textos literários extrapolam para fora de si, realizando interações com outros sistemas semióticos, que não apenas as relações dialógicas no âmbito literário. A “revolução” da perspetiva de abordagem do Cânone literário assinalada por Miguel Real e por Isabel Ponce de Leão no paratexto de dois dos seus textos, tem sido, aliás, destacada desde o início da trilogia por Fernando Cristóvão (2014) e Daniela Marcheschi (2014). Também no Prefácio à obra em análise, o filósofo Miguel Real sanciona que a análise se centra especialmente no universo ocidental, o português e o lusófono, e que o itinerário desta obra se processa deliberadamente para fora do texto.
Neste livro, a ensaísta traz à colação a simbologia subjacente ao pensamento e à efabulação artísticos – livros, pinturas, música, monumentos… – apontando para uma reflexão que tem como base o cânone estético e cultural do Ocidente (cf. Bloom 1997; Rita 2014) e, em particular, da portugalidade. Annabela Rita verte o olhar sobre as cantigas de Dom Dinis, rei-sábio-poeta, plantador de árvores e de sonhos. E, como na contemplação de um quadro, debruça-se sobre a janela que enclausura Joaninha, a bela adormecida de olhos verdes imortalizada por Almeida Garrett. Analisando obras e autores clássicos ou coevos, põe, também, em destaque olhares e visões quase fantasmagóricos: o da feiticeira Circe, espreitando por detrás dos versos de Natália Correia, o de Ulisses, na obra de Teolinda Gersão, o do desalento omnipresente na obra de Gonçalo M. Tavares.
Num outro prisma, focaliza-se a dicotomia pictórica: a desenhada pelas palavras e a instaurada pela tinta. À semelhança do que retrata uma pintura ou uma fotografia, no poema “De Tarde”, Cesário Verde apela ao sentido da visão, exibindo a alegoria da relação amorosa. Opõem-se lhe visões místicas recriadas por autores como Jerónimo Bosch e Marc Chagall, ou visões oníricas, como as ostentadas na pintura de El Greco. Fernando Pessoa, António Cândido Franco ou Agustina Bessa-Luís são alguns dos autores cujas obras a ensaísta se propõe analisar, sob a perspetiva caleidoscópica inter-artes.
Segundo a autora, os Painéis de S. Vicente (1470-1480), pintados sob a égide da cultura ocidental cristã, sancionam o modelo parenético do reino. O mesmo sucede com a edificação de complexos arquitetónicos que contribuem para a mitificação de uma geografia sagrada ou messiânica. De entre os exemplos apresentados na obra, citam-se o Convento de Tomar ou a escadaria do Bom Jesus de Braga, elos que se unem misticamente numa peregrinação que culmina em Santiago de Compostela.
O Monumento de Mafra erigiu-se a sete léguas da capital do V Império: Lisboa. No imaginário sustentado por Camões, a cidade é celebrada como Nova Roma; António Vieira denomina-a Cidade Eterna, tomando de empréstimo o epíteto a Vergílio, que assim cognominava Roma. Na senda da antiga e mítica portugalidade, Lisboa edificou-se numa área de sete colinas, à semelhança de Jerusalém ou de Constantinopla, referências arquetípicas e simbólicas para os mundos Judaico, Muçulmano e Cristão. Mitologicamente fundada por Ulisses e osculada pelo Tagus, o rio que alardeava areias de ouro, facto anotado por Ovídio e Cervantes, Lisboa é, também, objeto de análise neste livro. O percurso de Belém ao Cais das Colunas evoca uma dupla cartografia: a do império real e a do império mítico que anseia pela chegada triunfal de Dom Sebastião.
Muito haveria a enunciar sobre esta obra, que diria enciclopédica. Mas apenas a leitura pode preencher as lacunas deste puzzle que me propus completar. Balzac definiu a Constantia como a virtude da permanência. Emoldurando as artes, de que a literatura é exemplo, Annabela Rita define, de forma douta e refinada, o cânone literário Do que não existe, construindo uma tela que obriga a uma reflexão dialógica entre a imaginação da ficção literária e das artes, em geral.