ausência de concorrência por motivos técnicos: a 'desculpa' sem fundamentação dos sistemáticos ajustes directos

Banco de Portugal: Cuatrecasas é incompetente para tratar dossier Novo Banco, mas já é a única capaz de tratar dossier BANIF

por Pedro Almeida Vieira // Novembro 8, 2023


Categoria: Res Publica, Exame

minuto/s restantes


No dia 27 de Outubro, o Banco de Portugal fez um ajuste directo com a Vieira de Almeida, considerando, sem se preocupar em fundamentar, que era a única capaz de a assessorar no dossier Novo Banco; mas três dias depois, tacitamente, passou-lhe um atestado de incompetência ao entregar um outro ajuste directo à Cuatrecasas, para assessoria ao dossier BANIF. A mesma Cuatrecasas tinha, implicitamente, sido considerada incapaz de tratar do dossier Novo Banco, daí nem sequer lhe ter sido dada oportunidade de mostrar as suas capacidades em concurso público. Pior, contudo, estão centenas e centenas de sociedades de advogados, sistematicamente incapacitados a participarem em concursos públicos, porque o regulador de Mário Centeno sempre invoca a inexistência de concorrência por “motivos técnicos” para ir entregando ajustes directos de milhões de euros de uma assentada sempre aos mesmos – leia-se: quase sempre à Vieira de Almeida e à Cuatrecasas.


O título deste artigo poderia, em alternativa, ser “Banco de Portugal: Sociedade de advogados Vieira de Almeida é incompetente para tratar dossier BANIF, mas já é a única capaz de tratar dossier Novo Banco”. E isto porque, em dois contratos por ajuste directo, com uma distância temporal de três dias, o Banco de Portugal usou o mesmo argumento para a celebração de ajustes directos – a alegada inexistência de “concorrência por motivos técnicos” para escolher ora a Vieira de Almeida, para um, ora a Cuatrecasas, para outro.

E, no entanto, os objectos de ambos os contratos, na assessoria jurídica na área da banca, e até a experiência de ambos as sociedades, são bastante similares. No contrato assinado no dia 27 de Outubro, como aliás o PÁGINA UM já noticiara, o regulador escolheu por ajuste directo a Vieira de Almeida para o acompanhamento, entre outros, da execução de acordo parassocial e do contrato de compra e venda e de subscrição de acções do Novo Banco entre o Fundo de Resolução e a Nani Holdings, do Acordo de Capitalização Contingente e do acordo de servicing, celebrados entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco. Para este ajuste directo, o regulador decidiu definir um preço de 600 mil euros (sem IVA) por ano, sendo que somente estão garantidos os primeiros dois anos, sendo o terceiro, de igual montante, opcional.

Mário Centeno, governador do Banco de Portugal desde Julho de 2020.

Este contrato teve a particularidade de ter efeitos retroactivos, ou seja, a Vieira de Almeida estava a trabalhar para o Banco de Portugal desde Dezembro de 2022 sem estar suportado em qualquer contrato, embora a decisão para avançar com o contrato no valor global previsto de cerca de 2,2 milhões de euros (IVA incluído) tivesse sido tomada apenas a 19 de Setembro deste ano pela Comissão Executiva para os Assuntos Administrativos e de Pessoal do regulador presidido por Mário Centeno. Ou seja, terá havido uma combinação prévia para que esta sociedade de advogados começasse a executar tarefas antes da celebração de um contrato público, mas havendo garantia de ser paga sem ter de competir contra outros concorrentes.

Mas o mais curioso é que a suprema experiência e a excelsa capacidade da sociedade Vieira de Almeida, para tratar de assuntos relacionados com o dossier Novo Banco – tão reconhecidas pelo Banco de Portugal, sendo esse o motivo por nem sequer ter valido a pena a abertura de um concurso público por inexistência de concorrência por motivos técnicos –, não são pergaminhos suficientes para tratar de assuntos similares relacionados com o dossier BANIF.

Com efeito, o mesmo Banco de Portugal que considerou que a Vieira de Almeida era a única sociedade capaz de tratar do dossier Novo Banco, veio três dias depois ‘passar um atestado de incompetência’ para similares funções no dossier BANIF, uma vez que entregou essa função à Cuatrecasas por um motivo comprometedor: “não existe concorrência por motivos técnicos.

De facto, conforme estabelece o caderno de encargos do ajuste directo entre o Banco de Portugal e a Cuatrecasas, assinado no dia 30 de Outubro, e publicado ontem no Portal Base, o objecto do contrato, além de incluir em questões correlacionadas com o outro contrato entregue à Vieira de Almeida associado ao Novo Banco e ao Fundo de Resolução do Banco Espírito Santo (BES) – nomeadamente “o patrocínio forense do Banco de Portugal/Fundo de Resolução, no âmbito dos processos instaurados”, e dos que o possam vir a ser, na sequência da Resolução do BES, em particular dos processos”, onde se destaca o diferendo da “Oak Finance” –, tem como objectivo a “assessoria jurídica ao Departamento de Resolução no acompanhamento dos assuntos extracontencioso relacionados com o BANIF/Oitante“.

Em nenhum dos documentos incluídos nas várias peças dos procedimentos, em cada um dos dois contratos, se encontrou qualquer listagem de advogados ou de especialistas, tanto da Vieira de Almeida como da Cuatrecasas onde se comprove, sem margem para dúvidas e em prol da transparência na gestão de dinheiros públicos, que, nos respectivos contratos entregues, sejam imbatíveis. E se se assume que são imbatíveis nas funções de assessoria para o contrato que ganharam, não há nada que explique porque foram depois considerados incapazes para o outro concurso.

Nos documentos integrantes dos dois processos que levaram aos dois ajustes directos nada consta sobre a fundamentação, em concreto e de facto, da inexistência, da concorrência por motivos técnicos, algo que constitui à partida um atestado de incompetência a centenas de sociedades de advogados que têm sido sistematicamente preteridas pelo Banco de Portugal em assessorias jurídicas.

book lot on black wooden shelf

Conforme o PÁGINA UM constatou em consulta ao Portal Base, a ‘regra’ do Banco de Portugal, detentora de um departamento jurídico próprio e de um orçamento generoso, tem sido entregar contratos por ajuste directo a sociedades de advogados, sendo evidentes as preferências pela Vieira de Almeida e a Cuatrecasas, sempre invocando urgência e/ ou ausência de concorrência.

Até agora, a Vieira de Almeida destaca-se, com larga distância, da concorrência em contratos de ‘mão-beijada’: desde 2014 já facturou um total de 27,3 milhões de euros em serviços jurídicos desta natureza, dos quais quase 18 milhões desde 2018. Com o mais recente contrato de 2,8 milhões de euros (IVA incluído), a Cuatrecasas ultrapassou a fasquia dos 10 milhões de euros em ajustes directos: desde 2015, os nove contratos desta natureza com o Banco de Portugal permitiram-lhe uma facturação que se aproximará dos 12 milhões de euros.

O contrato entre o Banco de Portugal e a Cuatrecasas integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados entre a passada sexta-feira e domingo. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

PAV


Ontem, dia 7 de Novembro, no Portal Base foram divulgados 714 contratos públicos, com preços entre os 2,40 euros – para fornecimento de ferramentas, utensílios e electricidade, pelo Ministério da Defesa Nacional – Marinha, através de concurso público – e os 3.039.607,20 euros – para aquisição de medicamentos, pelo Centro Hospitalar Universitário de Santo António, através de ajuste directo.

Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 15 contratos, dos quais 10 por concurso público, três ao abrigo de acordo-quadro e dois por ajuste directo.

Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados 11 contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Centro Hospitalar Universitário de Santo António (com a Alnypt, Sociedade Unipessoal, no valor de 3.039.607,20 euros); Banco de Portugal (com a Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados, Sociedade de Advogados, no valor de 2.300.000,00 euros); Município da Trofa (com a Quadrocale – Obras de Arte, no valor de 223.000,00 euros); Metropolitano de Lisboa (com o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, no valor de 190.000,00 euros); três do Município de Lisboa (dois com a Projecto 83, um no valor de 183.451,40 euros e outro no valor de 183.451,40 euros, e um com a Monocapa, Lda., no valor de 170.468,80 euros); Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (com a Vertex Pharmaceuticals, no valor de 167.351,03 euros); Autoridade Tributária e Aduaneira    (com a Gartner Portugal, no valor de 162.000,00 euros); Município da Guarda (com a ETUG – Empresa de Transportes Urbanos da Guarda, no valor de 150.000,00 euros); e o Centro Hospitalar do Oeste (com a Cepheid Iberia, no valor de 144.567,00 euros).


TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 7 de Novembro

(todos os procedimentos)

1 Aquisição de medicamentos

Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Santo António

Adjudicatário: Alnypt, Sociedade Unipessoal

Preço contratual: 3.039.607,20 euros

Tipo de procedimento: Ajuste directo


2Empreitada de construção de ERPI, designado CIBES – Centro Integrado de Bem Estar e Saúde 

Adjudicante: ASMAN – Associação de Solidariedade Social Mouta Azenha Nova

Adjudicatário: Costa & Carreira, Lda.

Preço contratual: 2.445.000,00 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


3Aquisição de serviços de assessoria jurídica e de patrocínio judiciário           

Adjudicante: Banco de Portugal       

Adjudicatário: Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados, Sociedade de Advogados

Preço contratual: 2.300.000,00 euros

Tipo de procedimento: Ajuste directo


4Empreitada de construção de empreendimento habitacional multifamiliar na Ilha de São Miguel

Adjudicante: Vice-Presidência do Governo Regional

Adjudicatário: Caetano & Medeiros – Sociedade de Construção Imobiliária

Preço contratual: 2.141.569,23 euros

Tipo de procedimento: Concurso público


5Aquisição de medicamentos diversos   

Adjudicante: Unidade Local de Saúde de Matosinhos

Adjudicatário: Merck Sharp & Dohme

Preço contratual: 1.884.810,47 euros

Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 7 de Novembro

1 Aquisição de medicamentos

Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Santo António

Adjudicatário: Alnypt, Sociedade Unipessoal

Preço contratual: 3.039.607,20 euros


2Aquisição de serviços de assessoria jurídica e de patrocínio judiciário           

Adjudicante: Banco de Portugal       

Adjudicatário: Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados, Sociedade de Advogados

Preço contratual: 2.300.000,00 euros


3Aquisição de escultura de Alberto Carneiro

Adjudicante: Município da Trofa

Adjudicatário: Quadrocale – Obras de Arte

Preço contratual: 223.000,00 euros


4Assessoria técnica especializada para acompanhamento de empreitada no âmbito da expansão do Metropolitano de Lisboa

Adjudicante: Metropolitano de Lisboa

Adjudicatário: Laboratório Nacional de Engenharia Civil

Preço contratual: 190.000,00 euros


5Intervenção urgente para a criação de medidas de segurança na Creche “O Palhaço”

Adjudicante: Município de Lisboa

Adjudicatário: Projecto 83

Preço contratual: 183.451,40 euros

MAP

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.