CAPÍTULOS 13-15

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Novembro 12, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


13 – A secreta ligação entre garçons e ladrões

– Chegamos aos elevadores – digo eu.

– Sim, chegámos aos ascensores – confirma o Batota.

O ascensorista do hotel, como todos os seus irmãos de ofício, exibia uma tremenda unha de cinco centímetros no dedo mínimo da mão esquerda, utensílio de que se utilizava para a exploração das côncavas cavernas dos seus ouvidos.

– Para que andar vamos, seu Manoel? – perguntou o unhudo quando embarcamos.

– Para todos! – urrou o português. – Aperta em todos os botões. Descemos no andar que quisermos.

De imediato, já recuperado do súbito acesso de raiva, Batota explicou-me em voz baixa:

– Temos cinquenta apartamentos neste hotel. Vinte no primeiro andar e vinte no segundo. No terceiro, estão as dez suítes para os hóspedes de maior importância.

Descemos. Saímos no terceiro andar.

Abrindo os braços, Manoel Joaquim Batota sussurrou trêmulo umas palavras que trepidavam de emoção:

– Aqui estão eles. Quatro gênios à minha esquerda, mais três gênios à minha direita. Quantos mortais no mundo inteiro tiveram o privilégio de vê-los assim, aqui reunidos, de ouvi-los, de admirá-los? Ninguém antes. Vivemos aqui um momento raro, tu e eu, Campestre. Devíamos cair de joelhos e agradecer ao Senhor por esta abençoada oportunidade.

O lusitano respirou fundo, passou a mão pelos olhos já marejados e acrescentou:

– Por quarenta e oito horas estas sumidades estarão no meu hotel. Enfrentarão pesada agenda, com incontáveis reuniões de trabalho. Somente duas pessoas têm autorização para permanecer na sala de debates: tu e eu. Somente um garçom virá aqui, de vez em quando. Cogitei em trazer-lhes tradutores, mas os escritores os recusaram. Como todos sabem falar inglês, francês e espanhol, escolherão a língua que quiserem. E tu, qual dessas línguas sabes falar bem?

– Bem, nenhuma bem – respondi. – Mas me defendo em portunhol porque me criei em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Arranho um pouco de francês, e dou uns tapas em inglês, que é a língua mais primária do mundo.

– Como assim, néscio?! – o lusitano irritou-se. – Primária? Como podes dizer isso do idioma de Shakespeare, meu idiota?

– Por causa da conjugação do verbo to be – expliquei. – Veja só: you are, they are. É como se a gente dissesse em português: tu és, eles és.

O gerente do hotel permaneceu alguns segundos em silêncio coçando a cabeçorra.

– Talvez não sejas tão estúpido como pareces à primeira vista.

Paramos ao final do corredor. Batota esfregou vigorosamente as mãos antes de escancarar uma porta na qual se lia: Sala de Reuniões.

– Está quase na hora dos nossos gênios saírem da toca.

Entramos. A sala media uns quarenta metros quadrados e tinha umas trinta poltronas. Ao fundo, sobre um estrado, encontrava-se uma grande mesa redonda, em torno da qual havia sete cadeiras de assento e espaldar estofados em veludo. Em cima da mesa, sete microfones, blocos de rascunhos e canetas.

O alfacinha apontou para um canto do estrado onde estavam duas cadeiras comuns:

– Ficamos ali. A menos de três metros dos escritores. Mesmo que venhas a passar o resto da porca da tua vida de joelhos diante de mim jamais conseguirás agradecer-me o suficiente pelo imenso favor que hoje te presto.

Subimos ao palco e, calados, tomamos posse de nossos modestos assentos.

Mal nos sentamos, ingressou no salão um sujeito vestindo calça preta, paletó branco, camisa branca e gravata borboleta preta. Sem muito esforço, conclui ser o garçom. Mas, surpreso, percebi que aquele era o primeiro do seu ofício que eu via usando óculos de lentes mais grossas que fundo de garrafa. Lembrei de uma frase que o pai sempre repete quando vamos a um restaurante:

– Nunca vi ladrão de óculos nem garçom míope, filho. Até nisso eles se parecem bastante.

O garçom curvou-se diante de Batota:

– Alguma recomendação especial, seu Manoel?

– Permanece sempre invisível. Materializa-te apenas se precisarem de ti.

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14 – Sangue, sexo e sobressaltos

Desaparecido o garçom, o português voltou-se para mim:

– Espero que os nossos geniais escritores sejam pontuais. Existe um protocolo minucioso do ingresso deles no salão. Entram sozinhos e com intervalo de dois minutos entre um e outro. E a ordem de entrada foi ditada por sorteio.

Consultei meu relógio: três horas em cima da pinta.

Voltei os olhos para porta e, um segundo depois, vi adentrar a sala de reuniões do Imperial Hotel da República nada mais nada menos que lady Águeda Christine, a quase centenária primeira-dama do crime inglês.

Foi demais para o meu futebol. Agarrei-me à cadeira e fechei a boca para que o coração não me escapasse por entre os dentes. Ali estava em carne e osso – mais apropriadamente, em pelancas e ossos – a autora de clássicos como Assassinato no expresso Liverpool-Manchester e O sucessivo falecimento de dez meninos de cor, a criadora do famoso detetive Herculano Poire.

Águeda Christine era mais alta, mais magra e mais velha do que eu pensava, mas reconheci-a pelos cabelos pintados de azul. Logo meus olhos correram para as mãos da escritora inglesa. Eu sabia que era apaixonada por joias. Naquele dia ela usava oito anéis de diamantes grandes como bolas de golfe.

De imediato, liguei o gravador.

Manoel Joaquim Batota não se aguentou dentro das calças, correu até ela e, meio ajoelhado, resfolegante, babujou-lhe os anéis.

– Credo! – disse Águeda Christine, em português, com forte sotaque mineiro. – Não foi boa a safra do vinho qui´ocêandou bebendo, Chateau Gauchier, 1972.

Incrível! A escritora inglesa havia descoberto a marca e até a safra do vinho só pelo bafo do filho da Lusitânia!

– Brilhante descoberta, lady Águeda! – extasiou-se o Batota. – Foi mesmo um Chateau Gauchier, mas nem dei atenção ao ano da safra. Mas por saber que vos encontraria, após o almoço, escovei furiosamente os dentes, a língua e as gengivas. Como pôde a senhora descobrir que…

– Uai! Depois da criação de Sherlock Holmes, todos nós, britânicos, ficamos bem mais espertinhos.

– Fantástico! – continuou o gerente do hotel. – Eu bebi apenas…

– Três taças!

Batota arregalou seus olhos negros:

– Como a senhora sabe até o número de taças?

– Pelo número de raias vermelhas nos seus olhos, bobão!

– Estou absolutamente pasmado. Venha comigo, lady Águeda, vou conduzi-la ao lugar que lhe cabe na mesa. Mas diga-me, no entretanto, apenas uma coisinha: onde a senhora aprendeu a falar tão bem a língua do glorioso Camões?

– Foi em Londres com o meu jardineiro, um rapaz bobinho de Minas Gerais, chamado Bonifácio. Toda hora ele virava pra mim e recitava um trechinho de Os Lusíadas. A parte de que gosto mais é aquela que diz assim:

Antes, em vossas naus vereis cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte!

– Oh! – entusiasmou-se o português. – É lúgubre, mas divinal!

– Belo livro de aventuras! – acrescentou a inglesa. – Os Lusíadas é uma obra atulhada de tempestades, guerras, traições, cobiça e mulheres bonitas. É disso que gostam os leitores.

– Belíssima tese! – disse Batota, sacudindo com movimentos concordantes sua cabeçorra. – Mas, fale-me da vossa receita de sucesso. Como faz para deter tantos apreciadores em todo o mundo?

– Eu minto, uai! Quanto mais inacreditável a história, mais leitores eu arranjo. Escritores de livros policiais apenas repetem a fórmula dos jornais populares: sangue, sexo e sobressaltos.

– Permita-me discordar! – disse Batota, lançando um olhar enviesado na minha direção. – A senhora está a ser muito modesta. Diga antes ser a vossa prodigiosa imaginação que vos permite inventar tantas histórias maravilhosas. E a vossa imensa gentileza depois concede-nos a benesse de nos deleitarmos com essas maravilhas.

– Deixa de ser bobo, sô! Invento nada, não. Os fatos mais estúrdios acontecem primeiro com as pessoas e só depois de relatados pelos jornais é que surgem nos meus livros. A gente só faz adaptar o que leu nas gazetas.


15 – A paixão brasileira por chope e dança

A segunda escritora a adentrar o salão, exatamente dois minutos depois, foi a impressionante Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.

Era outra santa que tinha lugar de honra no altar dos meus deuses da escrita. Mundialmente famosa, ela havia passado quarenta e cinco dos seus cinquenta e oito anos nas prisões da Sibéria e da ilha de Sacalina. Durante trinta anos esteve em cana, na jaula propriamente dita. O restante ela viveu, ainda menina, numa casa ao lado da prisão onde se achava preso seu pai, o poeta anarquista Fiodor Iuri Ivan Igoróvitch Dornascostasviésky.

Sou capaz de jurar que ela tinha uns cinco centímetros a mais do que a altura registrada na sua biografia oficial, que era de um metro e oitenta e cinco.

Seu rosto tinha a cor de uma barra de giz. Por isso, ganhavam força o vermelho do batom que ela usava nos lábios grossos, o carmim que ostentava nas bochechas e o preto do rímel que lhe sublinhava os esgazeados olhos cinzentos.

Não sou especialista em vestuário, mas julgo que o roxo predominante na saia xadrez que ela vestia não combinava bem com os riscos amarelos da blusa vermelha nem com o estampado do blêiser verde-limão.

– Boa tarde, apostemas! – gritou para nós a russa, com sua voz de baixo profundo, num fortíssimo sotaque nordestino.

Fedorova trazia firmemente preso pelos dentes um charuto cubano de dez centímetros. De circunferência. O comprimento era o dobro.

Ela avançou a passos largos pela sala e com um salto acrobático pulou para cima do estrado, que tremeu e gemeu. Com um alentado suspiro, causador de uma tormenta que agitou as folhas do seu bloco de anotações, sentou-se ao lado de Águeda Christine.

A seguir, seus olhos correram nervosos pela sala, como que procurando microfones escondidos.

– Isso aqui mais parece um velório, cacete! – gritou. – Cadê a música? Russos não fazem nada sem bebida e dança. Dizem que a grande paixão dos brasileiros é por chope e dança. Cadê os músicos?

– Não me deram ordem para providenciar música! – desculpou-se Batota, curvado diante de Fedorova.

Apontando com o charuto fumegante para o português, a mulherona indagou:

– Mas diga-me, cabra da peste, onde tão aqueles bronzeados e bronzeadas, que, seminus, rebolam, obscenos, ao som de pandeiros e tamborins? Por aqui só vejo rostos sombrios. Onde está a histérica alegria dos brasileiros?

– Valha-me Santo Antônio! – meio zonzo, Batota pediu ajuda ao céu.

– Deixe de embromação, seu filho de uma égua. Onde está a cachaça? Você deve saber que um russo, quando abre uma garrafa, só para de beber quando ela fica seca ou quando ele próprio vai para o hospital.

– Bebida posso conseguir-lhe imediatamente – disse o gerente do hotel e bateu palmas.

Como combinado, o garçom materializou-se imediatamente.

Agarrando o garçom pela lapela, a autora de Contravenção e penalidade, Um dia na vida de Ivã, o Terrível e Guerra é guerra gritou:

– Você, seu amarelo, traga logo uma garrafa de cana! Pode ser de qualquer marca, mas tem que estar cheia até os cornos!

O garçom desmaterializou-se em fração de segundo.

Fã de carteirinha da autora russa, eu estava simplesmente aparvalhado. Agarrado à cadeira, eu tentava dominar os tremores de frescura que me percorriam o corpo. Quando, por fim, Fedorova dirigiu seu olhar na minha direção, eu quase me derreti de tanta emoção. E ela continuou a discursar:

– Estou avexada com Brasília. Esta bosta aqui lembra Moscou. Milhares de funcionários vagabundos, gordos todos, de ternos mal cortados, rodando o tempo todo em carros negros; um bêbado em cada quarteirão; e mendigos por todo lado. Realmente, estou me sentindo em casa.

– Onde vossa excelência aprendeu a falar esse português castiço? – indagou Batota, pasmo por perceber que também Fedorova arranhava bem a última flor do Lácio.

– Na Sibéria, com um vigarista cearense chamado Alencar. Ele foi pego vendendo vodca falsificada no Metrô de Moscou. Cumpriu pena de vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Na prisão de Gorógrado, fundou uma fábrica de redes. Foi lá que o encontrei. Alencar era tão habilidoso que consertava relógio no escuro usando só os cotovelos…

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(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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