ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

As janelas, que nos hospitais se tornam quadrados

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes


A luz azulada, emanada do computador, recorta o perfil gentil daquela mulher contra o meu olhar ensonado.

Um perfil doce de mãe, cansada, que, cuidando do bebé numa enfermaria, neste quarto piso de hospital, se apoquenta em terminar trabalho, para aquela empresa na segunda-feira não sentir a sua falta.

Um semi-sorriso, meigo, o olhar, concentrado, o cabelo, amarrado, no topo do fato, de treino, as esquinas, das omoplatas, a revelarem-se, na camisola, e curvada, num ninho, o adormece, num sussurro, baixo.

Deu-me bolachas, um iogurte, uma maçã, uma t-shirt limpa e o tal sorriso, meigo, de mãe, mãe de toda a gente, tudo, tudo doce.

Eu, olhem, sabem… Dei-lhe palavras, que tenho muitas, e ela lá ia mordiscando todas, pacientemente; às vezes lá lhe sacava o riso aberto, e sentia-me finalmente a retribuir a atenção silenciosa que ela me dispensava, com elegância.

Ouvem-se pi, pi, pi, e choros, coisas que caem noutros pisos, tosses, mais choros, o burburinho das máquinas, e cadeiras e mesas, que parecem vaguear sozinhas pelo edifício. Os cadeirões, repousos de mãe, descansando ossos, grasnam loucamente para se abrirem, e cada uma, de nós, hesita em sequer deitá-lo (deita-te) pi, pi, pi.

A medo passa, mais uma noite, e pergunta-se, a medo, a uma enfermeira de olhar enervado, se temos direito a pequeno almoço.

– Não! E não o vai deitar agora que ele começa a chorar e depois não me vai ouvir a explicar! (deita-te).

lighted brown tunnel with black metal pipes

Já sem medo, perguntamos se temos direito às visitas, para poder aproveitar a avó a chegar, e pudermos assim acorrer, a correr, à casa de banho, numa outra paz de espírito.

– Não! E só pode o pai e a mãe ou outro acompanhante designado. Na obstetrícia decidiu-se fazer assim, e por isso já sei que ontem era diferente, mas hoje é assim, porque houve uma reunião e a pediatria não vai fazer diferente e tem de compreender que as visitas só vêm desestabilizar o serviço (deita-te).

Aqui, aprendemos gestos, formas, de deslizar, truques, para imobilizar, um pequenino, mentiras que repetimos, sem cessar, para que acreditem, que vai passar, que a dor é precisa (deita-te).

Uma mãe montou ninho, naquele quarto, cinco sacas, tamanho jumbo, almofadas, jogos, livros, cartas, comida, comida, comida, roupa (deita-te), e o pai, sem entender tanta daquela coisa (deita-te).

Mas a mãe monta este ninho, para o seu passarinho, põe a alma no bolso, entra pela porta, para compor as penas, em desalinho, dele (deita-te, deita-te, deita-te).

Movem-se tristezas, nos corredores, e nem sou digna de observar, estas lindas almas. Que doces são.

silhouette of children's running on hill

Aquele menino, crachá de médico e estetoscópio ao pescoço. Já possui privilégios, acesso às áreas reservadas, domina já rodapés e circuitos.

Batas azuis, brancas batas, um rapaz bonito encosta-se ao contentor do lixo, preto, companhia de elevador. Observo: curioso como me habituei já a evitar tocar nos contentores, e agora sou passageira de uma relação íntima que não me lembro muitas vezes que existe.

Monstros mortos de pé: é o que os hospitais, os nossos, são.

– Você tem de entender que as refeições são um serviço à parte, e não somos nós responsáveis pela organização.

Eu entendo tudo. Eu quero é sair daqui. Só me custa não poder levar estas mães comigo, e as crias delas e os ninhos também.

A vigília permanente, recortada, a luz azul, e ainda há quem queira proibir, ou deseje obsolescer, a palavra “mãe”.

Noite dentro, aqui todas as janelas são quadrados, polígonos luminosos, mantendo-nos alertas ao mundo, lá fora, na rua, na estrada, num movimento sem importância.

white bird on brown coconut husk

Noite dentro, todos os quadrados estão enviesados, nascem losangos, e trapézios.

Monstros, mortos de pé, com formigueiros, a tentar manter de pé, e a circular pelos circuitos, enquanto empurram contentores deslocando ar pastoso por vários canais. Lixívia, máquinas (pi pi pi), mopas, tabuleiros, sopa, sem sabor, onde os legumes morreram há largas horas, pão de dias (dias maus, maioritariamente), olhares pálidos, cansados, de acompanhantes resignados, pavimentos descartáveis, vinílicos (sabem o efeito dos vinílicos na saúde?), e poliéster (voltem as mantas de lã, por favor: mas porque deixaram as formigas de ter respeito pelo que é natural, como nós?)

Assim é, quadrados com viés, a bandeirinha da república, na entrada do bloco, a recepção renovada, a ripado de carvalho, para ter cara lavada. E os órgãos, em sepsis, escondidos atrás das paredes…

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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