cartas de amor: episódio 09

Maria Alice nem quer acreditar: Estremoz deita mais achas para a fogueira

white arrow through red heart road signage

por Clara Pinto Correia // Setembro 9, 2023


Categoria: Cultura

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CARTAS DE AMOR

Agora em Setembro de 2023

Com uma caloraça que ninguém entende

Todas as uvas já vindimadas

As azeitonas maduras nos ramos

E seja o que Deus quiser,

Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


“Ao menos diz-me,” pede-lhe ela procurando manter a calma, no silêncio de cortar à faca que reina subitamente dentro do carro. “Agradeço-te as correcções… o TOUTS que passou a TOUS… os Citroens DS que eram todos de quatro lugares… Mas, afinal, como foi? Gostaste do conto? Ou não?”

O seu grande amante que nunca o será deita-lhe um olhar de morrer de tristeza.

“Bloody Mary,” diz ele, “eu não leio. Não tenho tempo para conseguir ler.”

Então este homem tinha mesmo um Cyrano de Bergerac que escrevia por ele.

Meu Deus. Quantos mais defeitos ocultos terá?


Quando Alexandre Noronha despeja Maria Alice à porta da sua casa, Josefa vem a correr toda cúmplice e sorridente, abrir-lhe os braços para a apertar contra si com toda a força.

Mas, para seu grande espanto, a velha e dedicada serviçal vê o BM prateado arrancar com os pneus a chiarem, estonteantes. Sábia e – por vezes – minimal, abraça a sua menina, acaricia-lhe o cabelo, sussurra aos seus ouvidos palavras de conforto, e vai tentar murmurar qualquer coisa doce quando Maria Alice, de nervos em franja, lhe pede que pare com isso e que vá mas é buscar-lhe um café muito grande à cozinha. Depois, procurando libertar-se dos vestígios de Alexandre Noronha, passa tudo a pente fino e descobre o nécessaire dele esquecido na casa de banho. Logo a seguir, incrédula, vê que ele deixou por baixo da cama uma mala grande  e dura, de rodinhas, ainda por trancar. Ao puxá-la para fora e abri-la, espalham-se por todo o chão do quarto centenas de cartazes do CHEGA.

Bem, pensa ela, desfazendo-se em suores frios, mas há que aceitar que ser do CHEGA não é nenhum pecado.

Então e o Ruizinho da Farmácia, tão simpático, com um pernão tão gostoso?

Então e o rapaz do café da esquina, que está sempre a tratar-me por prima com um grande sorriso?

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Então e o Bruno, o meu querido Bruno, aquele amigo do António José que o assistia nas pegas de cernelha? Um rapaz tão lindo, de olhos tão verdes, que, quando éramos jovenzinhos e ambos competíamos nas provas de salto, ainda fez amor comigo tão apaixonamente num daqueles quartos do antigo HOTEL ALENTEJANO que nem sequer tinham casa de banho… ah, Bruno.

Bruno, Bruno, eu sei que te lembras de tudo. O que nós suámos, e o que nós nos beijámos, e o que nós gememos e, quando tu me fazias vir e eu me torcia toda, toda molhada, toda suada…

É do CHEGA, o Bruno, lá isso é. Eu sei, porque agora, sempre que posso, passo as noites de festa a dançar com ele sob o olhar atento da mulher e das filhas, e o Bruno aperta-me toda contra si e não pára de dizer-me ao ouvido,

“Eu sou militante do CHEGA, ouviste, ó pintassilga, eu não gosto dos ciganos, tu estiveste foi muito tempo no Canadá, queres que eu te arraste para o primeiro quarto do ALENTEJANO que estiver livre e volte a fazer de ti uma mulher inteligente, queres, queres, queres que eu te faça tudo o que te fazia dantes, florzinha, a ver se ganhas juízo?”

E, nestas alturas, eu rio, rio, rio.

E tenho mais imensos amigos aqui em Estremoz que são do CHEGA por causa da abundância profusa[1] dos ciganos. Eu chamo palhaço ao André Ventura, chamo-lhe até bobo da corte, mas a verdade é que sou mesmo amiga de muita gente da CHEGA, portanto deixa para lá que isso não conta. Vou mas é ao Facebook do Alexandre, onde nunca fui porque entre nós nunca se trocaram imagens, e deixo-lhe lá uma mensagem, bem legível e melhor ilustrada, com aquelas fotos de nós dois que a Josefa tirou cá em casa, a dizer,

ALEX MEU QUERIDO O TEU NÉCESSAIRE FICOU CÁ EM CASA, QUERES QUE O GUARDE PARA  A  TUA PRÓXIMA VISITA? Ou que to envie para onde, pois que nem sequer sei onde vives desde que te divorciaste da Gi?

Ora, ele está divorciado, não faz mal, pois não? É só uma brincadeira de quem tem bom perder.

a couple of street lamps sitting next to each other

Maria Alice demora algum tempo a encontrar o Face de Alexandre, uma vez que não sabe todos os seus nomes. Por vezes apetece-lhe desistir, mas a raiva dá-lhe asas. Mas, quando finalmente o encontra…

… com imagens em tempo real, aparentemente filmadas pela tal filha menina-mulher que vai fazendo um relato em voz alta de tudo o que se passa…

Santo Deus.

Aí está porque é que teve que sair da praia a correr.

Alexandre Noronha está neste preciso momento a falar num comício do CHEGA em Beja[2], abraçado a Gi Medeiros, a sua linda mulher muito loira, que, vista nas imagens, parece uma modelo. E, uma vez mais, está a defender que as mulheres que fizeram abortos devem ser obrigadas a tirar os ovários.

Do lado de fora da porta, Josefa bate insistentemente. Maria Alice ainda hesita, mas depois resolve oferecer-lhe o nécessaire para ela oferecer a algum gajo no Natal e abre assim mesmo – despenteada, de olhos vermelhos e com olheiras profundas, só de shorts e T-shirt, a própria imagem da despodência[3].

Está alguém por trás da Josefa.

Quando, finalmente, a porta é empurrada para o lado com toda a delicadeza, verifica-se tratar-se do próprio Bruno, o feliz proprietário da CASA DAS  BIFANAS DE ESTREMOZ, com quem Maria Alice fez tantas maldades aos vinte anos. Maria Alice nunca mais o viu a não ser nas noites em que dançaram nas festas locais. Agora, na luz do dia ainda intensa, faz mesmo vibrar o coração desabrigado da pobre esposa do amigo António José. É ele, mais maduro. É mesmo ele, como aos vinte anos mas de olhos ainda mais verdes, ainda com mais sardas, ainda mais destacadas contra a pele ainda mais morena. Assim que aperta Maria Alice contra o coração, Josefa desata num dos seus falajares.

“Ai, menina. O menino seu marido voltou um mês mais cedo de fazer de tradução simultânea em Bruxelas. Meteu licença sem vencimento, sabe o que isso é? Eu também não sabia, mas ele contou-me tudo, é assim uma coisa como o que dá nos pobrezinhos, e nos doentinhos, e depois nós temos de ajudá-los. E eu estava maravilhada, porque ele só dizia coisas lindas. Diz que tem saudades da sua linda terra, diz que tem saudades da sua  linda casa, diz que tem saudades de viver na cidade mais luminosa do mundo… e, sobretudo, diz que tem saudades da sua linda mulher de olhos cor de mel. Diz que foi o Canadá que lhe estragou o amor pela menina que saltava melhor de que todos os homens de Estremoz…”

“Ahahah!”, interrompe Bruno, e Maria Alice quase desfalece ao escutar de novo, sem ser ao ouvido, aquela voz que a deixava sempre sem fôlego. “Francamente, ó Josefa. Diz lá se, nos concursos, eu também não parecia um milagre a voar pelas nuvens, e a encher o lago depois dos três obstáculos de repuxos contra o sol já a descer, todo vermelho.”

“Pois sim,” responde-lhe Maria Alice, que só de ver o Bruno recuperou o orgulho e se encheu de brios. “Tu bem podias saltar para te admirarem, mas era só assim, mesmo, com o sol a pôr-se, de maneira a ninguém ver bem os teus saltos. E depois todas as mulheres gritavam – OLÉ! – e tu ficavas tão orgulhoso, mas tão orgulhoso…”

E continua, desta vez para a empregada:

“E tu pára-me já com isso, ó Josefa Eufémia, que eu não quero lembrar-me nem mais de uma vez dos pobrezinhos sempre com o nariz a pingar que vinham cá a casa, todos esfarrapados, com as vozes muito roucas, a pedir ajuda ao gordo com que eu me casei. Bruno, queres vir comigo ver a sala de redacção da PANGEIA?”
O convite faz com que se desloquem os dois para a ala da casa pejada de máquinas, telexes, televisões nas notícias internacionais cada uma ligada a seu canal com impressoras, e, no canto mais longínquo, resmas de papel, cartuchos, secretárias, estantes, e prateleiras. Mas se julgavam que podiam estar sozinhos bem podem é mas é[4] tirar daí o sentido, porque Josefa continua a bradar à porta.

“Bem, e, dito isto, nós-as-mulheres-do-povo nunca o achámos assim tão gordo como isso. Era gorducho, talvez, e com umas entradas mas muito pequenas, para homem talvez usasse perfume a mais, mas é porventura[5] de uma grande elegância, com piada, diga-se já, aquelas piadas como a que sempre foi um homem tão à frente que comprou o carro da AUTOPERNAS[6] logo em 1658 porque mesmo naquela altura era evidente que, mais cedo ou mais tarde, ia ser preciso tirar a carta, e as do século XVII eram mais baratas, já se sabe[7]. Olhe, minha menina, o seu gorducho não era parvo, ai isso antes pelo contrário, era charmoso e divertido, e tinha aquelas maneiras bonitas de quem não descura enquanto não beijar a moça mais bonita do baile.”

E é distraindo ambos com estas conversas que Josefa consegue insinuar-se[8] dentro do escritório.

Vendo-a entrar, compreendendo que nunca na vida terá privacidade, Maria Alice começa a deslizar, estonteada, pela espreguiçadeira de lona riscada de azul com uma inscrição oval que diz por trás WONDERWOMAN. Josefa, que conhece bem os efeitos devastadores da sua hipoglicémia, põe-lhe logo à frente uma caixa de chocolates. Depois regressa, sozinha, para os lados da cozinha. E é aqui que, subitamente, os ouve gritar lá de dentro,

“Vai-te embora procalhão![9]

“Ai! Ai eu agora tenho é que me ir embora?”

“E cala-te, que só a tua própria voz me faz mal[10]! Queres que eu te atire com um agrafador  à cabeça?”

“Ai eu agora tenho é que apanhar com um agrafador na cabeça? E desde quando é que isso passou a ser um agrafador, já agora, ó pintassilga?”

woman holding gray and black staple

Maria Alice passou vinte anos sem ver Alexandre, passou vinte anos sem ver Bruno, sente-se condenada a continuar a ver António José, e sente-se muito mal. Fecha-se no escritório, Fecha as portadas. Não sabemos se, durante todo o dia seguinte, esta mulher se manteve consciente ou – nem ela seria capaz de o dizer. Quase não tem voz. Sente frio. Tem horror ao frio. Um verdadeiro horror cego. Em pequenina, por causa de tratamentos bárbaros da pele, feitos com azoto líquido, tremeu e  tremeu horas a fio, até que a tiraram de lá de dentro com a face e das orelhas e os dentes todos a baterem. Depois a vida espetou com ela no Canadá.

Já chega, pensa Maria Alice, e é só o que pensa. Já chega.

Mas claro, custa-lhe muito pensar “CHEGA”. E, por isso, começa a sentir-se cada vez pior.

Finalmente, agora que já não se ouve nada, Bruno encosta um olho ao buraco negro da fechadura. Maria Alice está viva, acordada, e, a avaliar por todos os seus sinais de choro silencioso, está até mais do que consciente.

Josefa vem trazer-lhe um grande copo de água com algum açúcar e pingos de limão. Depois, enquanto a segura e segura o copo, vai falando com calma à sua doentinha, ao mesmo tempo que Bruno, sentado do outro lado da cama, lhe acaricia a mão com gentileza.

“Agora a menina só tem é que tratar bem o seu maridinho querido,” diz-lhe Josefa, enquanto Bruno lhe pisca o olho cheio de malandrice. “Eu chamo já as outras mulheres e limpamos-lhe todas a casa num instante. Ele está mesmo aí a chegar, e já me disse que vai convidar o Bruno, para depois irem os três para a… para a naite, pois, já se sabe. E então ele deixou-me um recado expressamente a pedir que a menina lhe faça aquele seu guizadinho de javali de que eles os dois gostam tanto, e pediu-me a mim que lhe faça aquelas lamparinas com rodelas de violetas e de cravinas vermelhas escuras, pode ser menina? Eu também posso fazer-vos a salada de beldroegas, com cebola e salsa picadinhas, e dou um dos ossos maiores do Valali ao Júnior para que ele não se sinta excluído.”

Bruno interrompe-a com uma gargalhada sadia. 

“Para que o cão não se sinta excluído, Josefa? É aqui a minha pintassilga que anda a ensinar-te essas palavras finas?”

“Ora adeus vais-te-me embora[11], moinante,” rosna-lhe Josefa com todos os seus pudores linguísticos ofendidos. “Ou julgas que eu não sei o que é que tu e a chinesa da loja, enfim, cala-te boca? Ande, menina, anime-se. Vamos para o jardim lá de trás com os candeeiros amarelos nas hastes do laranjal, pomos a loiça do cavalinho, e olhe, pergunte ao Bruno o que é que ele acha, a menina vista aquele vestido azul-celeste todo flutuante e já sabe como é, este aqui também andou apaixonado por si desde novo e nunca se esqueceu do seu perfume e olhe que…”

Bruno interrompe-a outra vez, com mais uma gargalhada sadia. 

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“Então o que é isso, Josefa, agora vais divulgar todos os segredos de Estremoz? Vê lá se também contas à Alicinha de quem é que o António José é mesmo filho, anda lá!”

“Pois muito bem, menina Mariazinha, então fique sabendo que o menino António José é meu filho!”, responde-lhe Josefa de queixo erguido. “O bebé da Senhora nasceu morto, e então eu, que também tive o meu nessa mesma altura, dei-lho. Foi por amor, para ele poder viver melhor, compreende, menina Mariazinha? Nós éramos muito pobres e eu nem nunca fui casada.”  

“Claro,” sussurra o Bruno para a Maria Alice.  “E enfim, deste-lhes o puto é como quem diz. Aqueles dez mil euros que eles tiveram de pagar pela criança pobrezinha ainda ajudaram mais a Josefa a não ser pobre. Devias ter pedido vinte mil, ó Josefa.”

“Sim, ó menina,” concorda Josefa. “Passe-me aí vinte mil mocas para as mãos e eu não mostro a ninguém as suas fotos com o olho azul de Lisboa, nem o filme de vocês a dançarem, nem as cartas de amor que a menina deitou no lixo sem sequer rasgar, nem falo de nada, e depois somos todos felizes.”

Maria Alice está agora quase a desmaiar de vertigens. 

Nessa altura ouve-se, vinda do portão, o tom inequívoco da voz festiva de António José. Incapaz de aguentar mais tanto stress, Maria Alice desmaia nos braços de Bruno.     


Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7 e o Episódio 8 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


[1]Abundância profusa”, Maria Alice? Ora, deixem lá as redundâncias da miúda em paz, seus voyeurs. Não é a melhor altura para exigências estilísticas.

[2] Consta que em Beja ainda há mais ciganos do que em Estremoz. Mas será possível?

[3] Bravo, Maria Alice. Despodência. É assim mesmo.

[4] “Bem podem é mas é.” Isto sim, é carinho pelo português.

[5] Pronto, pronto, pronto, hey, a malta rende-se, este “porventura” saiu mal à pobre Josefa. Mas qualquer pessoa precisa de começar por qualquer lado.

[6] Do Lino Pernas. Foi recentemente trespassada, mas ainda não se percebeu a quem.

[7] Piada genuinamnente alentejana, aprendida em Novembro último com um dos maqueiros das urgências do Hospital de Évora.

[8] Insinuar-se. Hm? Hm?

[9] “Procalhão”, foi mesmo o que ela disse. Memórias das brincadeiras de antanho, quando a ambos puxava muito o pé para a chinela naquelas alturas.

[10] Também brincadeira de outros tempos. Inspirada na inesquecível canção MULHER FATAL, de Toy, em que a rima do refrão declara que “só o teu próprio olhar me faz mal”.

[11] De todas as expressões locais, este “Ora adeus vais-te-me embora” está quase no cimo do TOP 10. Expressão local vencedora no último episódio.

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