cartas de amor: episódio 10

Maria Alice e um gatinho de prego a fundo: Estremoz troca galhardetes

white arrow through red heart road signage

por Clara Pinto Correia // Setembro 15, 2023


Categoria: Cultura

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CARTAS DE AMOR

Agora em Setembro de 2023

Com uma caloraça que ninguém entende

Todas as uvas já vindimadas

As azeitonas maduras nos ramos

E seja o que Deus quiser,

Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ

UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


Do lado de fora das portas do novo escritório da PANGEIA, ouvem-se os ruídos característicos da chegada a casa de António José. Duas malas enormes LOUIS VUITTON, cheias em igual medida de propaganda informática e de roupa suja[1], caem ao chão com estrondo. A pasta estofada da GUESS que comporta três PCs e três telemóveis 5G voa para cima da poltrona da entrada com um vibrante “saia mas é já do meu ombro, sua esclavagista”. Ouvem-se ainda dois sapatos de camurça italiana a atingir o focinho do Júnior, que está tão impaciente por entrar na cozinha que se limita a soltar um único latido de advertência, para que o marido de Maria Alice, acabado de chegar a casa a morrer de saudades, tenha cuidado com o que pode acontecer-lhe por incomodar um Leão da Rodésia. Finalmente, agora indiscutivelmente barrigudo e quase careca, o homem que viu a luz assim que saiu do Canadá entra pelo escritório dentro de braços abertos, a prometer à esposa um futuro pecaminosamente feliz.

E logo a seguir, ao ver o que ali se passa, estaca, deixa cair os braços, e fica a abrir e a fechar a boca como uma criancinha pequenina que está prestes a desatar a chorar –[2] mas que, dadas as circunstâncias, não tem nada a certeza de que essa seja a melhor das estratégias para chamar a si as atenções.


Josefa está toda salpicada de sangue, a torcer as mãos de desespero, e a tremer tanto que é incapaz de usar sequer o telemóvel. Bruno está agora sentado, com Maria Alice ainda desmaiada nos seus braços, mas a mancha de sangue na camisa branca que entendeu por bem envergar para todo este magnífico reencontro não pára de crescer. Tudo indica que, tão cedo, não lhe será possível rebolar outra vez no feno com a sua adversária dos concursos de salto, que lhe piscava sempre o olho com um sorriso matreiro antes de se fazer  ao circuito.

         “Liga para o 112, meu!”, grita ele para António José mal o vê entrar no escritório. “A Josefa está que nem consegue marcar três dígitos seguidos no telemóvel dela. E, quanto mais o tempo passa, mais a tua mulher se vai esvaindo em sangue. Acorda, ó gordo. Caraças, pá, acorda. Eles que venham já a correr para aqui, ou então ela morre.”

         Sublinhando devidamente o horror desta última frase, o Júnior põe-se na sua melhor pose de puro pânico, com o ridgeback todo em pé e a cauda enfiada entre as pernas, e desata a uivar à janela.

         “O meu filhinho não é gordo,” choraminga Josefa, aproveitando distracção geral causada pela manifestação de agonia do pobre animal.

a bunch of red bubbles floating in the air

Como é evidente, afligidos por tantos gritos e prantos, e agora, ainda por cima, aterrorizados pelo uivo aflitivo de um Leão da Rodésia[3], os vizinhos não se fazem tardar. Completamente aturdido, como já chamou o 112 e por enquanto não pode fazer mais nada, António José recruta, no tom irrecusável de um filho pródigo[4], a ajuda preciosa da Josefa. Perdido por cem, perdido por mil[5], diz-lhe ele. Ao menos, a gente que ofereça aos visitantes o melhor que um marido desesperado pode oferecer. E então a Josefa traz de lá dos fundos da casa iguarias de fazer crescer a água na boca, tais como pão caseiro fresquinho em grande abundância, manteiga e queijo do cardo muito duro juntamente com um Queijo de Serpa que se desfaz na boca, e ainda um paio enguitado daqueles que se fazem todos os anos no fumeiro lá de casa cortado em fatias fininhas. Tudo isto vem acompanhado por uma profusão de caixas de Instinto tinto e branco, mais outras tantas litrosas, mais um festival de destilados em que alguns são magias da empregada. É assim que aparece na sala uma aguardente de medronho tremenda que a Josefa prepara todos os anos em Novembro, celebrando a chegada do doce Verão de São Martinho e obrigando a serviçal a diálogos que nunca mudam muito, tais como,

Isso já se prova, ó prima Josefa?” – “Sai-me mas é daqui, grande moinante, e de caminho vai chamar prima à tua mulher, e ela que te ature que é o que para isso que as mulheres servem.” – “Mas a prima Josefa hoje está tão mimosa… como é que quer que eu hoje não venha o dia inteiro ver de si?” – “Ora adeus, vais-te-me embora[6]! Queres que eu chame o Cão, é isso que queres?” – “Pronto, priminha, eu se quer chamar o Cão vou mas é já tirar a certidão, para depois poder casar-me consigo e experimentar o seu medronho deste ano antes dos outros homens todos de Estremoz.” – “JÚNIOR! JÚNIOR, ataca.” [7]

Outros destes produtos alquímicos podem ser trazidos de fora, que nem isso lhes tira o mérito de terem vindo ali parar trazidos directamente da origem. Este é, por exemplo, o caso da ginginha trazida da adega do Crispim Raposo, amigo do António José desde que ambos estiveram nas brigadas anti-minas de Angola e feliz herdeiro de alguns terrenos na encosta Sul da Serra d’Ossa que lhe permitem não precisar de trabalhar grande coisa.  Quando traçada com o medronho da Josefa, a ginjinha do Crispim Raposo produz uma aguardente de tal qualidade[8] que até faz os velhotes darem estalos sonoros com a língua, como se, de facto, tudo aquilo que ali se passa fosse a festa mais animada de que há memória em Estremoz.

Para já, não conheceremos melhor o Crispim Raposo.

Aliás, neste ajuntamento específico o Crispim Raposo nem sequer se encontra presente. Apesar de todas as acelerações do tempo criadas pela internet, as notícias de Estremoz ainda demoram um certo tempo a subir a Serra, depois a espraiar-se pela encosta Sul, e depois, finalmente, a  fazer um eco assustador nas centenas de hectares de cerejal que o Crispim herdou do pai.

empty field during foggy weather

Mas talvez este sexagenário de grande presença tão ainda venha a aparecer mais tarde.

Sim, claro. Aceite-se desde já que, se aparecer, será pelos motivos que já se vão tornando óbvios, uma vez que se revelam, cada vez mais, parte de uma rotina deveras estimulante.

Não é por nada, mas consta ali a toda a volta que também este Crispim teve uma paixão mal escondida pela menina dos raids que era então a namoradinha oficial do Conde da Orada, assim como consta que essa atracção foi mútua. Aliás, consta até que o parzinho[9] ainda teve a lata de fazer rolar algum feno na estrebaria onde o aristocrata guardava os seus preciosos Lusitanos de tourear[10]. Ah, meus ricos vinte anos.

O que é que querem? Para todos os efeitos, isto é uma ocasião social. Por conseguinte, chega-se lá e põe-se a escrita em dia.

         Entretanto, e como é evidente, toda a gente dá os seus palpites sobre o que fazer para reanimar Maria Alice. Mas Bruno, que fez duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana para ganhar uns cobres quando decidiu assentar e constituir família, não deixa ninguém tocar-lhe. Vem em todos os manuais: não se toca no ferido até chegarem os bombeiros.

         “Ó vizinha, mas que conversa foi esta, agora assim sem mais nem menos? Assentar e constituir família? Ele não teve mas foi outro remédio senão casar, coitado do moço, que a brasileira já estava grávida de quatro meses e meio, e mais, era das gémeas.”

         “Essas brasileiras sabem muito,.”

         A camisa branca do Bruno está agora completamente ensopada em sangue.

         “Então e a que vem esse sangue todo, ó vizinho?”, pergunta-lhe em voz sinuosa[11] a mulher cheia de madeixas californianas que é de facto vizinha do Bruno, motivo mais que necessário e suficiente para já terem ido várias vezes juntos tratar de assuntos privados ao palheiro, queixando-se os dois à saída que a puta de agulha é mesmo impossível de encontrar[12].

         “A nossa Alicinha teve uma daquelas suas crises de hipoglicemia e desmaiou,” responde-lhe o Bruno numa vez tão grave que faria do grande Johnny Cash um verdadeiro menino do coro[13]. “Ainda tentei agarrá-la, mas aconteceu tudo tão depressa que não cheguei a tempo. Bateu com a base posterior do crânio, mesmo onde o cérebro se liga à espinal medula, aí nessa maldita esquina de ferro dessa puta dessa secretária. Estou que fracturou mesmo o osso[14], e que, pior ainda, um dos fragmentos desse cabrão desse osso lhe fez um corte na jugular. Está com o pulso cada vez mais fraco, e já há uns bons vinte minutos que não dá acordo de si[15]. E aqueles cabrões do INEM…

         Ergue-se uma grande chilreada de vozes desgarradas, cada uma contando os seus desaires particulares com o INEM, quase todos culminados por um inacreditável final trágico. A este propósito erguem-se mais taças e bebem-se mais traçadinhas, ao mesmo tempo que se acomoda tudo com o paio e o queijo.

         Passados mais outros bons vinte minutos de comes e bebes, do lado de fora do escritório, na estradinha de macadame que leva ao lago do jardim, ouvem-se, finalmente, as sirenes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. A agitação é tal que o chefe das operações, um homem rijo que esteve até há poucos anos em França, onde aprendeu tudo o que sabe sobre salvar as vidas dos outros, dispara imediatamente dois tiros para o ar. A sua voz, vibrante e cheia, está sem dúvida habituada a dar ordens de comando desde há tempos imemoriais.

         “C’est les Pompiers,” grita ele, para grande gáudio do Júnior, que pára finalmente de uivar e vem juntar-se à festa agitando a cauda. “Allez, allez, allez, tout le monde recule et personne ne bouge!

         Antes de mais nada, tal como ninguém é obrigado a tocar piano, também ninguém é obrigado a falar  francês, mas enfim. Os que não compreendem a língua compreendem facilmente a intenção. O pior é que a vizinhança é pródiga em emigrantes regressados de França, pelo que, infelizmente, a maioria dos presentes compreende, de facto, o que diz o Chefe. E, assim sendo, entre a ordem para recuar e a ordem para ninguém se mexer gera-se, inevitavelmente, uma enorme confusão. Esta confusão, no entanto, joga directamente a favor dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. Com todo o pessoal distraído pelo imbróglio linguístico em causa, ficam com mais margem de manobra para estancar a hemorragia, utilizando a camisa que Bruno põe logo à disposição para produzirem um garrote feito tão depressa, e com tal perícia, que ninguém saberia dizer de onde veio. Concluída mais esta manobra, e agora com toda a assembleia dos vizinhos a observar de olhos tensos, como quem assiste a um 007 numa sala de cinema[16], o Chefe e o seu Primeiro Auxiliar corrigem com suavidade o posicionamento do corpo, transferindo-o de seguida para uma maca com um cuidado absolutamente crítico. Esta maca, por seu turno, é prontamente despachada para dentro da ambulância, que aguarda a sua tripulação de motor ligado e faróis acesos.

Ó Regadinho! Vocês despachem-se que ela está a perder o pulso, ouviste? Eu já lá vou ter convosco” grita-lhes Bruno, também ele muito bom nisto das vozes de comando desde que fez as tais Comissões de Serviço.

E aquela chinesa, sempre a engataste?”, pergunta-lhe o dito Regadinho enquanto prende a maca com mil cuidados ao interior da ambulância[17].

Quero lá saber da chinesa!”, berra-lhe Bruno de cabeça perdida, embora não esteja a dizer a verdade. “Eu queria era que vocês não tivessem aparecido com quarenta minutos de atraso!”

Estávamos a salvar um gatinho que caiu por uma sarjeta,” esclarece prontamente o condutor da ambulância. “E, de cada vez que o tirávamos da sarjeta, o cabrão do gatinho desatava a miar e voltava a enfiar-se lá dentro[18]. Ah, cum caraças. Puta de noite, é ou não é?

Um gatinho?”, gritam algumas vozes da vizinhança[19], indignadas e incrédulas. “Vão deixar morrer a senhora por causa de um gatinho?”

woman standing near body of water

Então, mas primeiro chamaram-nos por causa do gatinho. E depois a gente fazíamos o quê, com todo o pessoal das esplanadas a ver? E depois queriam que deixássemos lá o gatinho? E depois eles iam queixar-se à dos Animais, e depois...”

Lá isso é verdade, ó amigo, esses dos Animais são comunas e têm as costas quentes e então abusam sempre que podem, e se querem saber eu digo-vos já, é por essas e por outras que eu voto no CHEGA.[20]

Pois claro, vizinho, então aqui em Estremoz há mais ciganos do que pessoas e os cães têm que andar à trela mas os ciganos…[21]

Neste ponto preciso[22], quando as vozes anónimas já começam a descambar com grande velocidade, o Chefe acha por bem pôr termo às trocas de galhardetes com mais dois disparos para o ar. Seguidamente, aperta com firmeza a mão do Bruno, enquanto lhe fala de homem para homem.

Ó jeune homme, vomecê é que é o Marido? Vamos levar imediatamente a senhora para as Urgências de Évora e avisamos que o senhor… o…?”

Bruno. A menina é a Maria Alice, e eu sou o Bruno. Digam que é o Bruno das sandes de carne assada, eles sabem logo quem é.”

Carne assada? Mas então não era bifanas?[23]

Ó Chefe! Venha depressa que alguém tem que massajar aqui o coração da nossa Alicinha![24]

Ai vocês conhecem-se? Que grande sorte a tua, ó mabeco.”

Ah! O chefe não me diga que também é de Angola[25]!”

Né à Nova Lisboa, antes daquelas bêtes noires…[26]

         Foi só o Chefe distrair-se por um segundo com os mabecos e as suas origens angolanas que todos os presentes, bem comidos e melhor bebidos aquando da chegada dos Soldados da Paz, recomeçam a trocar galhardetes.

         “Mas de quem era o gatinho?

         “É um gatinho vadio, meu. Porquê, queres adoptá-lo?”

         “Dá cá que eu ponho o bicho em minha casa para dar sorte à Alicinha.”

         “Calma aí, mocinhos. Isto há papeladas a preencher para podermos transferir uma vítima da nossa ambulância…

         “Mas está tudo maluco? Agora transferem o gatinho com a senhora a esvair-se em sangue?”

         “Tecnicamente, mon cher, a senhora já não está a esvair-se…

         “Ó Chefe! Mas que caraças, ó Chefe! Venha depressa que a menina vai mesmo apagar-se!

hands formed together with red heart paint

         Sentado no sofá do canto, com a cabeça encostada ao ombro da Josefa que entretanto abraçou o filho com todo o seu imenso amor de mãe[27], António José treme, chora, engasga-se, bebe todas as traçadinhas de medronho com ginja que os velhotes lhe passam para as mãos, e é evidente que não está em estado de ir para o Hospital de Évora, a menos que queira ser imediatamente internado na Psiquiatria. Em tronco nu, despenteado, ensanguentado, Bruno salta sem hesitações para dentro do seu velho camião, colado ao recuo da ambulância.

A ambulância pára.

O que é que foi agora?;” berra Bruno da janela.

Está um caralho de um jipe estacionado atrás de nós, foda-se!”, berra o Regadinho de volta. “Mas quem é que… ah, olá, muito boa noite… e a menina quem é?

Anabela Farto, CMTV,” responde prontamente a jovem jornalista. E prossegue, virando-se para a câmara: “Estamos aqui em directo devido ao trágico acidente…

Ó que caralho, mas vocês tirem-me já daí essa puta gorda com as pernas tortas!”, berra Bruno da janela para quem o queira ouvir.

Fez-lhe a ficha num segundo,” comentam entre si os velhotes, orgulhosos da sua progenia, enquanto engolem mais traçadinhas e dão mais estalos apreciativos com a língua.

A jornalista vai averiguar quem foi o ordinário que a descreveu de forma tão eloquente, seguida pelo jipe da CMTV, com o operador de câmara a filmar tudo sentado na janela, com o torso todo virado para o exterior. Estas imagens, no entanto, virão a demonstrar-se inaproveitáveis uma vez que a equipa estava perdida de riso com a eloquência do alentejano desconhecido. De qualquer maneira, a manobra do jipe que se apresentou ali tão prontamente ao serviço da Verdade tem a vantagem de desimpedir a estrada e permitir à ambulância seguir caminho. Bruno seguiria de bom grado colado ao pára-choques dos Bombeiros, se não fosse a obstinação da jovem jornalista em obter declarações daquele jovem galante, com imagens que o mostrem bem, assim todo lindo, másculo, descamisado, e ainda por cima ensanguentado, numa sequência de 007 cada vez melhor.

Se a minha mulher morrer por vossa culpa eu hei de perseguir-vos até ao Inferno para vos torcer o pipo aos quatro,” declara Bruno para a câmara, depois do que arranca como louco na senda da ambulância e comete tudo o que é grave infracção rodoviária para chegar a Évora mesmo atrás dos bombeiros. É interrompido à entrada por estar sem camisa, o que levanta logo protestos de todas as miúdas, mulheres, putéfias, senhoras, brasileiras, gays e LGTBs que aguardam há horas infindas que alguém os tire daquela maldita sala de espera e faça alguma coisa por eles.

         “Parece a Nossa Senhora,” comenta uma jovem noviça que também aguarda a sua vez, olhando sonhadoramente para o rosto sereno de Maria Alice.


Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6, o Episódio 7, o Episódio 8 e o Episódio 9 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


[1] Toda a gente ali à volta conhece essas malas, assim como conhece o conteúdo que elas costumam transportar de cada vez que o antigo Cabo dos Forcados chega a casa. Foi a Josefa que estava tão farta de arrumar aquela tralha toda que certa noite de Verão, quando todos se sentam à soleira das suas portas, desabafou com a vizinha da casa do lado. Até falou dos slips ABANDERADO que vinham tão sujos, tão sujos, mas verdadeiramente tão sujos, que ela os agarrou com a pinça do barbecue e os pôs de saponária três dias, até já não ter nojo de lhes mexer. Claro que, no dia seguinte, esta história já fazia parte do património cultural do bairro. E sim, é verdade: do bairro à cidade basta um passo de criança.

[2] Travessão! Logo a abrir! E se o carácter infecto-contagioso desta pontuação infame servisse para prevenir os nossos leitores de que, mais cedo ou mais tarde, Alexandre Noronha há de voltar a enfiar-se nalgum veículo bem-parecido para reaparecer em Estremoz, triunfante e vitorioso como no fim de uma produção multiplex? Ná. É mais provável que, nesta fase dos acontecimentos, já nenhum travessão queira dizer nada, a não ser que a Autora ficou seriamente afectada pelo seu uso.

[3] Caíram mesmo nesta? Seus totós. Não se percebe logo que este som é o som de um uivo igual ao uivo de qualquer outro cão? A imagem do Leão da Rodésia a uivar, com o ar enorme e feroz de sempre e a crista castanha do ridgeback toda em pé, essa sim: é uma verdadeira imagem de filme de terror, com a grande vantagem de se ter mantido inédita até hoje. Usem à vontade, youtubers. Nós aqui no PÁGIINA UM não acreditamos em direitos de autor. E que acreditássemos. Não nos serviria de grande coisa.

[4] Isto não nos esclarece quanto a ele saber ou não a verdade no que respeita às verdadeiras circunstâncias do seu nascimento.

[5] Ressalve-se que este provérbio é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.  O seu a seu dono.

[6] Enprego de um dos melhores coloquialismos locais.

[7] E tanto basta para, por uns tempos, manchar a reputação da Josefa, seja quem fôr o engraçadinho que se insinuou na adega. Historinha de proveito e exemplo sobre o destino subalterno das mulheres, muito embora estejamos, de facto, em pleno século XXI. Inserida aqui a talho de foice por causa das idiossincrasias da Autora.

[8] Caso porventura subsistam dúvidas: onde se lê “de tal qualidade” leia-se “de tamanho teor alcoólico.”

[9] Na altura dizia-se mesmo “a parelha”, mas nós agora somos politicamente correctos.

[10] Já foi aqui mencionado o rumor que consta em Estremoz à boca pequena segundo o qual o Conde é um péssimo ganadeiro porque cria toiros bravos demais para poderem entrar numa tourada. Mas toiros é uma coisa e cavalos é outra, além de que os amores de Crispim Raposo e Maria Alice datam do tempo em que o Conde era o pai do presente Conde e as coisas eram todas muito diferentes. Se é que tais amores existiram mesmo, é claro. Espalhar boatos é como fazer o amor: reveste-se de grande importância nos sítios onde não há nada para fazer.

[11] Em voz sinuosa. Toda às curvas entre o divertido e o preocupado, a subir e descer conforme os comentários daqueles que a rodeiam. Belíssima imagem. É um desperdício o Bruno ter a Maria Alice a sangrar-lhe nos braços, mas atrás do tempo tempo vem, como toda a gente sabe. E já agora, este provérbio também é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.

[12] Lamentamos o carácter repetitivo destes pequenos detalhes. Acontece, apenas, que quanto menos houver para fazer mais as pessoas se interessam por palheiros.

[13] Referimo-nos aos coros, por regra religiosos ou patrióticos, em que os rapazes ainda têm a chamada voz branca. Esta voz, cujo encanto se perde depressa e foi a razão de ser por trás da emasculação destinada a criar castrati, faz soar a polifonia dos rapazinhos como um canto das meninas, ou das sereias, ou das deusas e semideusas e ninfas, ou ainda como o de qualquer outra mulher encantada incapaz de desafinar.

[14]Estou que fracturou mesmo o osso”: as expressões regionais são para usar em toda e qualquer conversa, mesmo que ninguém ali esteja a rir.

[15] Como toda a gente sabe, o amor faz milagres. No caso vertente, até consegue pôr o gajo das bifanas, treinado na República Centro-Africana, a falar num jargão médico perfeitamente credível.

[16] Não confundir com a televisão, e muito menos com o telemóvel. Os vizinhos sentem-se mesmo a assistir ao DIE ANOTHER DAY em sensaround sound.

[17] Lá está: onde não houver grande coisa para fazer…

[18] História absolutamente verdadeira, ocorrida há cerca de ano e meio para grande gáudio da maioria dos presentes (os outros eram os dos Animais). Apenas não sabemos que destino levou realmente o gatinho, porque, na vida real, os Bombeiros acabaram por desistir de tirá-lo da sargeta e foram salvar vidas para outro lado.

[19] As outras vozes pertencem aos dos Animais.

[20] Mau sinal: começam a fazer-se ouvir as primeiras vozes anónimas.

[21] Não sou eu que escuto atrás das portas. Eram os senhores que estavam a falar muito alto, a propósito de um cão branco e peludo, com todo o ar de ser roubado, que dois miúdos exibiam à trela com uma corda. A frase é aqui transcrita exactamente tal como ouvida na vida real.

[22] Mesmo a tempo. As vozes anónimas já começavam a descambar com grande velocidade.

[23] Mais uma voz anónima.

[24] Voz de um dos Bombeiros.

[25] Voz anónima, mas ao menos levantando uma questão interessante. Os mabecos são os cães selvagens da savana, que tanto podem ser predadores como necrófagos, e formam matilhas temíveis difíceis de enfrentar. Chegam a competir com leões isolados para lhes roubarem carcaças de gazelas, e são até capazes de atacar as próprias hienas, também elas ferozes e organizadas em bandos. Devido à sua necessidade de territórios muito vastos para os machos conseguirem manter a fertilidade, a espécie encontra-se neste momento ameaçada de extinção. Proteger os mabecos é um dever de todos nós, mas trata-se de um dever tão pouco estimulante como o dever de votar na Hillary Clinton contra o Donald Trump: os mabecos são feios como o diabo, o seu latido traz à ideia um sanatório cheio de tuberculosos, adoram deitar-se no meio da estrada para não deixar ninguém passar, e são desnecessariamente agressivos. O mês passado, um dos meus melhores amigos, também ele de Angola, teve a lata de chamar mabeco ao meu Sebastião. O cãozinho anda deprimido desde essa altura.

[26] Temos pena, mas cabe-nos esclarecer: não, o Chefe não está a fazer um daqueles trocadilhos de que os homens tanto gostam. Está mesmo só a dizer “aquelas bestas daqueles pretos” no mais requintado francês desde que morreu o Stendhal.

[27] Sim. Josefa é a verdadeira mãe de António José. Foi um dos vários shockers do episódio anterior, tantos e tão assombrosos que acabaram por levar ao desmaio da jovem. Note-se que, hoje em dia, aos quarenta anos as mulheres aparentam a juventude que anteriormente só possuíam aos vinte. Daí – por exemplo – a forma como os Bombeiros de Estremoz lhe chamam indiscriminadamente senhora ou menina, e certamente vários outros nomes que não se repetem em voz alta. Note-se, também, que a Autora voltou a cair na armadilha do travessão.

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