Este texto deveria ter sido publicado no ‘day after‘ à eleição de Donald Trump. Felizmente, o ‘Windows‘ rebentou (ou não fosse o ‘Windows‘) e o texto desapareceu, sendo substituído por uma neura que me fez desligar o computador e ir ver o Bayern – ‘Arouca’, para a Liga dos Campeões.
E digo felizmente porque aquilo que lá estava já não aparece aqui hoje. Nesse dia estava chateado, a pensar como é que tantos milhões podem votar num criminoso condenado (é facto, já não é domínio da opinião) e, principalmente, num homem que faz do racismo, do ódio e da divisão, os seus principais argumentos. Hoje, vejo a coisa de forma ligeiramente diferente e numa perspectiva menos emocional.
Já tinha escrito anteriormente que a escolha entre Kamala Harris e Donald Trump se resumia ao clássico ‘mal menor’, de que esta tão propalada democracia bipartidária é pródiga. De quando em vez, lembro-me que a diferença entre uma ditadura e a democracia americana está reduzida à unidade. Um partido separa-os.
Nesta escolha do ‘mal menor’, para mim, não existiam dúvidas. Kamala, com todos os defeitos, é um ser pensante, com alguma decência e dentro do perfil de bom senso que, pelo menos eu, imagino necessário a qualquer líder. Trump é um ser abjecto, sem o mínimo de cultura ou bom senso para administrar o condomínio do prédio, quanto mais os Estados Unidos.
Esta seria a análise fácil e aquela que escrevi antes do ‘Windows’ ter ‘eliminado’ o meu texto original. Hoje, tento colocar-me nos sapatos dos americanos que votaram, sem o habitual preconceito de serem todos ignorantes como pneus.
De um lado, tinham Kamala Harris, simpática, bem humorada, a prometer seguir a linha de Joe Biden, sem nunca conseguir explicar algo que se parecesse a um programa. A aposta total dos democratas, depois de conseguirem correr com um desgastado Biden, foi apenas a de mostrar bondade e amor, contra o ódio irradiado por Trump. É pouco. Foi pouco.
Trump, por seu lado, explicou exactamente ao que vinha. Inventou, mentiu, exagerou, mas disparou ideias: deportar imigrantes, acabar com as guerras que o Biden financiou, bloquear as entradas de produtos da China, descer os impostos.
O discurso de ódio contra os imigrantes foi abraçado, de imediato… por outros imigrantes. Num país onde todos são imigrantes, nada mais popular do que dizer que é altura de mandar alguém fora, porque, se pensarmos bem, há sempre alguém descontente com o vizinho.
Acabar com a guerra da Ucrânia com um telefonema, e antes de tomar posse, foi outra das promessas. Tendo em conta que a guerra gera emprego interno nos Estados Unidos, não sei bem se as pessoas queriam sequer esta medida ou se perceberam o seu impacto. Mas, se cumprir a promessa, já estará a dar uma ajuda aos europeus que pagam, com juros, a ‘conquista’ do Donbass e, de caminho, ainda têm de comprar energia mais cara aos Estado Unidos. Mas duvido que um norte-americano de classe média se deite a fazer estas contas ou discuta seja lá o que for que aconteça do Maine para o lado do Atlântico.
Já a promessa de bloquear os produtos chineses pareceu-me um tiro em cheio. Enquanto chamava marxista a Kamala Harris, Trump fazia promessas socialistas, daquelas que se fossem feitas na Venezuela dariam origem a sanções. Mas, melhor do que isso, foi ver norte-americanos na rua a pedirem o fim da entrada dos produtos ‘made in China’, quando os gigantes americanos já fazem as suas produções por lá. Apple, Boeing, Ford, GM, entre tantos outros, já produzem e optimizam os seus lucros graças à China. Ao impor um bloqueio, Trump está, na prática, não só a prejudicar o investimento norte-americano como a aumentar o custo dos produtos ao consumidor final. Ou seja, diz que lhes baixa os impostos e, em simultâneo, aumenta o custo de vida.
E as pessoas deliram, aplaudem, acreditam e… votam.
Foi esta a grande diferença. Trump mentiu, prometeu coisas que não sabe se pode cumprir e inventou, muito. Mas disse qualquer coisa. Mostrou uma espécie de plano. Kamala andou a fazer discursos de ‘Miss Mundo‘ e, depois de quatro anos da Administração Biden, enlameada directa ou indirectamente pela guerra da Ucrânia, o genocídio em Gaza e vários problemas internos (com a Economia e a imigração à cabeça), a saturação do eleitorado atingiu o pico.
Entre quem não diz nada, e promete a continuidade dos problemas, ou um lunático que dispara para todo o lado, as pessoas arriscam pensando: “o que há para perder?”
Se Trump se virar para dentro e tentar isolar um pouco mais os Estados Unidos, seja no comércio, na defesa, na Economia, nos muros da imigração ou nos bloqueios imaginários a produtos americanos vindos da China, por mim tudo bem. Aliás, quanto mais problemas internos ele arranjar e menos chatear no resto do Mundo, tanto melhor. Como isso não acontecerá, e os norte-americanos continuarão a meter a colher em todas as panelas, pode ser que a Europa aproveite esta oportunidade única para voltar a ter um lugar à mesa e deixe de ser um fantoche dos Estados Unidos. Que trate da sua defesa sem depender da NATO, que faça as suas relações comerciais com quem seja mais vantajoso, que tome posição nas decisões e nos conflitos, em vez de andar a distribuir lamentos e repúdios.
É tempo de a Europa assumir, novamente, o seu potencial. É certo que a tarefa se complica com gente como Macron, Meloni, Von Der Leyen, Orban, Scholz ou Borrell à frente dos destino europeus mas, enfim, é o que se arranja por agora.
Uma última nota para a hecatombe das previsões que, uma vez mais, se verificou na comunicação social portuguesa. A ‘coisa’ começa a criar alguma tradição. Andei semanas a ouvir que Kamala Harris tinha uma ligeira vantagem e, mesmo na noite eleitoral, ainda ouvi falar em empate técnico durante umas horas. Acabou numa ‘tareia republicana’ em todas as disciplinas de voto.
Como podem esperar manter a credibilidade, a seriedade e até a atenção dos espectadores quando falhas épicas começam a ser o prato do dia? A última vez que ouvi falar em empates técnicos, durante semanas, o acto eleitoral acabou numa maioria absoluta do Partido Socialista. Pensei se, desta vez, o Sebastião Bugalho voltou a fazer análises ou se lançaram apenas os búzios aí nas redacções.
Para a próxima é que é…
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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