Recensão: Lincoln Highway

O caminho faz-se caminhando

por Maria Carneiro // Agosto 29, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Lincoln Highway

Autor

AMOR TOWLES (tradução: Tânia Ganho)

Editora (Edição)

Dom Quixote (Julho de 2022)

Recensão

A Lincoln Highway é a estrada transcontinental mais antiga e a primeira construída para veículos motorizados, ligando as costas leste e oeste, dos Estados Unidos da América. O livro inclui, logo nas páginas iniciais, o seu mapa. É este percurso que Emmett Watson e o seu irmão Billy se propõem fazer, até à Califórnia, tentando fugir do passado e tentando encontrar a mãe que os abandonou, quando ainda eram crianças.

Emmett Watson, o irmão mais velho, cometeu um crime, e pagou um preço por isso. Tem 18 anos e acaba de ser libertado da instituição de reabilitação, onde cumpriu a pena. Regressa à quinta onde cresceu, no Nebraska, e tenciona juntar-se ao irmão mais novo, Billy, uma vez que, entretanto, o pai de ambos morreu, falido e na iminência de perder a quinta, penhorada pelo Banco.

À sua espera, Emmett, para além do irmão, tem o seu Studebaker Land Cruiser, de 1948 e para sua surpresa um envelope, com um valor considerável em dinheiro, deixado pelo pai, acompanhado por uma carta em que lhe pede que recomecem a vida noutro lugar. É isso que tencionam fazer, mas o destino troca-lhes as voltas.

Por peripécias várias, nomeadamente o facto de outros dois jovens, Duchess e Woody, a cumprir pena na mesma instituição, se terem escondido no porta-bagagem do carro do diretor, e aparecido, de surpresa, a um Emmett estupefacto, antes de lhe roubarem o carro.

Assim, em vez de rumarem à Califórnia, os dois irmãos fazem a viagem, de comboio, no sentido inverso, e vão para Nova Iorque, destino provável dos dois amigos.

Aquilo que prometia ser um romance on the road transforma-se, então, noutra coisa, e essa é apenas a primeira surpresa que nos reserva o autor.
O livro transporta-nos pela América dos anos 50, onde acompanharemos as várias personagens/narradores durante dez dias.

Numa contagem decrescente, o livro começa no capítulo dez e termina no um.  Com uma arquitetura narrativa muito original o narrador, em cada um dos capítulos, é diferente e várias vezes vemos as mesmas circunstâncias narradas de maneira diferente e com perspetivas diferentes dependendo de o narrador ser Emmett, Billy ou algum dos outros personagens como os dois amigos, Woody e Duchess ou Sally, a vizinha da casa do lado, que tem uma paixoneta por Emmett e tratou de Billy na ausência do irmão.

Esse é um dos aspetos mais fascinantes do livro: os capítulos têm uma impressão digital; o tom, a abordagem dos assuntos e até o sentido de humor são pessoais e, ao fim de alguns capítulos, começamos a identificar facilmente o narrador.

As aventuras alternadas dos vários narradores que deixam sempre um fio solto e que é retomado no capítulo seguinte criam uma sinfonia empolgante com muitas notas diferentes, de caóticas a assustadoras (um vagabundo, ameaça atirar Billy do comboio abaixo) a maravilhosas (a primeira visão de Manhattan, de Emmett, quando chegam a Nova Iorque), por exemplo.

Billy é uma criança maravilhosa: um misto de mágico e filósofo fascinado por um livro que leva na mochila “Compêndio de Heróis, Aventureiros e Outros Viajantes Intrépidos”, de Abacus Abernathe, e que já leu, como faz questão de repetir, vinte e cinco vezes, funciona como o deus ex machina; não apenas desencadeia acontecimentos como também tem uma habilidade quase mágica de criar a história certa para os estranhos que vão encontrando ao longo do caminho.

É ele que convence o irmão que o tal “recomeço de vida” deve ser feito em San Francisco onde ele acredita que a mãe está e tem sempre um pretexto para voltar ao livro que o faz acreditar que os grandes descobridores científicos podem viajar ombro a ombro pelos reinos do conhecido e do desconhecido aproveitando ao máximo a inteligência e a coragem, mas também serem ajudados por feitiçarias e encantamentos e a intervenção ocasional dos deuses.

Quem ler a Lincoln Highway vai adorar a viagem por cerca de seiscentas páginas, que se leem com o prazer da evasão, algo que apenas alguns livros nos proporcionam.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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