Os Lockdown Files revelam não apenas uma gestão casuística e uma completa ausência da Ciência na gestão da pandemia. Revelam sobretudo como, em democracia, é intolerável que um “bando de políticos” detenham tamanho poder sem serem escrutinados em contínuo. E deixa também no ar uma pergunta necessária: se foi assim na Inglaterra, que motivos nos levam a crer ter sido diferente em Portugal? O PÁGINA UM promete continuar a acompanhar este dossier bombástico, até porque para a imprensa mainstream lusitana nada se passa em Terras de Sua Majestade. Leia aqui a primeira parte deste dossier.
O Governo britânico definiu politicamente – e não com base em qualquer critério científico – uma estratégia de divulgação pública da variante Alfa, que fora sequenciada em Setembro de 2020 na região de Kent, para criar artificialmente uma “campanha de medo” que amedrontasse qualquer pessoa.
Esta é uma das novas revelações do Lockdown Files, do jornal The Telegraph, a partir do vazamento de mais de 100 mil mensagens de WhatsApp entre o antigo ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, e membros da cúpula governamental de Boris Johnson.
A veracidade das mensagens é inquestionável, porque foram directamente disponibilizadas pelo ex-ministro – que renunciou ao cargo após ter sido apanhado a violar as regras de distanciamento em Junho de 2021 – à jornalista Isabel Oakeshott, que ajudou o político a preparar uma auto-biografia. Face à gravidade das mensagens, a jornalista decidiu torná-las públicas.
Nas revelações deste fim-de-semana, pelo The Telegraph, fica evidente que Matt Hancock pretendeu, no final de 2020, capitalizar ao máximo uma nova e decisiva campanha de medo que assustasse qualquer pessoa. Em Dezembro daquele ano, em conversas entre Matt Hancock e os seus assessores foi sugerido que a variante B.1.1.7 – que viria a ser baptizada pela Organização Mundial da Saúde como Alfa – seria bastante útil na preparação do terreno para um novo bloqueio.
Numa conversa no WhatsApp em 13 de Dezembro, obtida pelo The Telegraph, Damon Poole, um assessor de comunicação de Hancock – informou o seu chefe que os deputados conservadores já estavam “furiosos com a perspectiva” de medidas mais rígidas, pelo que a solução poderia passar por aproveitar uma nova estirpe que fora detectada na região de Kent.
Refira-se que, ao longo da pandemia, foram sequenciadas mais de um mihar de variantes, mas a Organização Mundial da Saúde é que determinava, em função das informações que lhe fossem transmitidas, aquelas que passavam a ser consideradas de preocupação, com direito a nome de baptismo com letra grega.
Perante a ideia de se aproveitar essa nova variante, Hancock respondeu de forma coloquial: “We frighten the pants off everyone with the new strain”, que, se fosse dito por um político português, seria do género “Com a nova variante, assustamos toda a gente até borrarem as calças”. E Poole concordou: “Sim, é isso que vai gerar uma mudança de comportamento adequada”.
O plano avançou, e foram decretados mais rígidos confinamentos nesse Natal. Hancock apenas expressou sua preocupação de que as negociações sobre o Brexit dominassem as manchetes e reduzissem o impacto dessa campanha de medo.
Mas se, por um lado, o antigo ministro da Saúde compôs uma campanha de medo, por outro escondeu dados comprometedores para esconder efeitos de medidas de políticos trabalhistas. Por exemplo, a iniciativa do actual primeiro-ministro Rishi Sunak – então Chanceler do Tesouro – de incentivar o regresso aos restaurantes – com a implementação da campanha Eat Out to Help Out foi acompanhada por uma manipulação de dados que “manteve fora das notícias” que se estava a registar um aumento de casos positivos de covid-19.
Os Lockdowns Files também já revelaram as lutas de bastidores da política britânica, onde mais do que uma preocupação com a Saúde Pública, se digladiavam diversos actores da política. Nas mensagens divulgadas revelam-se as tenazes tentativas de Hancock liderar a campanha de vacinação para receber os louros públicos, confrontando e mesmo conspirando contra altos quadros.
Mostra-se também revelador que, desde Abril de 2020 – no início da pandemia – as vacinas, quaisquer que fossem, sempre se consideraram como a forma mais eficaz para as populações perdoarem os confinamentos e outras restrições, e ficarem gratos aos políticos. Porém, sobretudo a partir do final de 2020, com a chegada das vacinas, diversas mensagens dos Lockdown Files mostram a irritação e frustração de Hancock por não estar a receber os créditos políticos que esperaria.
As relações entre Hancock e a responsável pela task force britânica das vacinas, Kate Bingham, também são abordadas nas mensagens de WhatsApp. A responsável pelo programa de vacinação advogava em Outubro de 2020, em entrevista ao Financial Times, que a vacinação de toda a população “não iria acontecer” e que “só precisamos de vacinar as pessoas em risco”, ou seja, menos de metade da população, o que não terá sido do agrado do Ministério da Saúde.
Além disso, Kate Bingham opôs-se à compra de dezenas de milhões de vacinas da Índia. As tensões entre estes dois responsáveis, numa autêntica luta de galos, já eram conhecidas no Reino Unido desde, pelo menos, finais do ano passado.
Mas Hancock também teve péssimas relações com outros responsáveis da Saúde Pública, conspirando para tentar derrubar Simon Stevens, director do National Health Service (NHS) na Inglaterra – entidade homóloga da Direcção-Geral da Saúde –, com a ajuda de Dominic Cummings, o polémico conselheiro-chefe do então primeiro-ministro Boris Johnson.
No último lote de mensagens de WhatsApp, divulgados hoje no Sunday Telegraph , mostra-se também que o antigo ministro da Saúde tentou remover Jeremy Farrar de membro do Grupo Consultivo Científico para Emergências, porque este cientista havia criticado a forma como o governo estava a lidar com a pandemia.
Neste primeiro pacote de mensagens encontram-se muitos outros pormenores, por vezes perturbadores, sobre a forma jocosa como os políticos lidavam com o impacte da gestão da pandemia, como seja os confinamentos em hotéis, as multas aplicadas a transgressores ou mesmo piadas em torno da figura de Bill Gates.
A procissão, contudo, parece ainda estar no adro.