Estátua da Liberdade

Crise nos certificados de aforro: mais uma peça de teatro?

Statue of Liberty in New York City under blue and white skies

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Tivemos mais uma polémica do regime. Desta vez, foi o cancelamento da série E dos Certificados de Aforro, a tal que proporcionava uma taxa bruta de 3,5%, e que foi substituída pela série F com uma taxa de “apenas” 2,5%, que, contas feitas, representa cerca de 30% inferior à primeira.

Isto foi o suficiente para se levantar um “coro de protestos”, insinuando-se a velha questão de que os Governos estão “a mando” da banca; esta, ao sentir os depósitos bancários dos seus clientes a fugir, “pressionou” o governo e este, de imediato, “baixou as calças” e suspendeu a “fantástica” série E dos 3,5%.

pink pig coin bank on brown wooden table

Em face deste insidioso cancelamento, a “extrema-direita” decidiu chamar ao Parlamento o Ministro das Finanças; de imediato, para não ficar atrás, a “extrema-esquerda” solicitou uma audiência de urgência ao mesmo ministro das finanças, o Dr. Medina. Para completar o ramalhete, o segundo principal partido socialista do regime não abandonou a arenga e soltou a acusação de que o Governo estava a “acabar com a classe média com mudança nos certificados”.  

Como o leitor pode imaginar, isto não é mais que uma gigantesca encenação das muitas há muito praticadas pelo regime, semelhante àquela ida a um bar ao lado da Assembleia da República, onde depois de uma sessão parlamentar acalorada, um deputado da nação, depois de uma palmada nas costas, dirige-se ao outro: – “Desculpa lá, mas hoje, no calor da discussão, excedi-me, não merecias!”; – ao que o outro responde: – “Não há problema, somos todos amigos, afinal estamos todos no mesmo barco, ambos vivemos à custa do desgraçado povo português”.

Há décadas que os aforradores portugueses estão a ser assaltados, mas apenas extemporaneamente alguém se indigna. Basta-nos observar o que se passa nos últimos 11 anos. Comecemos com a inflação em Portugal, que é quase sempre superior à taxa a que os bancos (taxa MROs) se financiavam junto do Banco Central Europeu (BCE).

Evolução da inflação (%) em Portugal e das taxas (%) de financiamento ao sistema bancário praticadas pelo Banco Central Europeu (BCE) entre Abril de 2011 e Junho de 2023. Nota: MROs são as taxas praticadas pelo BCE para as operações principais de refinanciamento. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

Durante 76 meses, entre Março de 2016 e Junho de 2022, os bancos puderam obter empréstimos junto do BCE à caríssima taxa de 0%, repito 0%, autêntico dinheiro grátis. Desde 2011, apenas durante um período de 10 meses, as taxas de juro praticadas pelo BCE foram superiores à inflação, ou seja, praticamente desde a existência do BCE, os bancos puderam solicitar empréstimos ao BCE a taxas de juro reais negativas!

Sendo assim, por que razão iriam pagar fosse o que fosse aos desgraçados dos aforradores. O leitor ainda não reparou que nos últimos anos os clientes tornaram-se um verdadeiro empecilho para os bancos?

Vamos lá à questão relevante: o leitor aceitava emprestar as suas poupanças a uma taxa que nem cobre a inflação? A resposta parece-me óbvia.

Vejamos o caso de 2022, o leitor tinha uma poupança de 100 Euros e desejava comprar um brinquedo para o seu filho que custava igualmente 100 Euros. Caso desejasse deferir essa compra para o ano seguinte e depositasse a sua poupança num banco, com sorte, iria possuir no final do ano 101 Euros aproximadamente; no entanto, o brinquedo já custaria 108 Euros! E se depositasse no fantástico certificado de aforro da série E, entretanto cancelada, teria 103,5 Euros, mesmo assim insuficiente para pagar os 108 Euros!

euro banknote collection on wooden surface

O assalto aos aforradores ocorre desde o aparecimento do BCE, mas ninguém quer discutir o elefante na sala. Qual a diferença entre o leitor e o BCE? O leitor tem de trabalhar para obter rendimento e deferir consumo para lograr obter uma poupança, enquanto o BCE, com um simples apertar de um botão do computador, faz aparecer o dinheiro – autêntica magia! – em nome de um estímulo à economia. O leitor se o fizer, o calabouço será o seu destino mais certo, pois não trabalha para o bem comum.

Para além da repressão financeira, juros que não cobrem a inflação, temos recentemente uma inflação galopante. Os órgãos de propaganda do regime dizem-nos que a culpa é da guerra na Ucrânia ou mesmo da ganância pelo lucro por parte dos executivos das grandes superfícies. Na verdade, Estado, Bancos Centrais e bancos fazem parte do mesmo grupo de salteadores, todos coordenados na verdade. Os partidos apenas servem para distrair as atenções.

Em 2020, tivemos a putativa pandemia, onde todos íamos morrer e ir à falência. De imediato, apareceu o nosso anjo salvador: com a impressora, iria resgatar-nos de uma quase certa crise financeira!

person holding white and red card

Fica sempre a dúvida: se é assim, qual a razão para o Zimbabué e a Venezuela não serem enormes potências económicas, já que imprimir dinheiro é uma arte por aquelas paragens?

Entre o início de 2020 e Junho de 2022, o balanço do BCE subiu 4 biliões (4 seguido de 12 zeros). Esta massa monetária serviu para comprar toda a dívida emitida pelos vários Estados europeus. Este dinheiro gerou aquela frase que desbaratava: primeiro a saúde, a economia vê-se depois!

Para onde foi? Para as pessoas ficarem em casa a não trabalhar, para as empresas de análises clínicas, para o pagamento de fornecedores das várias empresas do Estado, através de ajustes directos, para as farmacêuticas – quem não se recorda das 10 doses por cidadão? -, para horas extras dos profissionais de saúde, para os órgãos de propaganda difundirem o terror a toda a hora. Uma festa!

Evolução do balanço do BCE, em biliões de euros, entre 2011 e Junho de 2023. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

Qual era o fluxo deste dinheiro: o estado realizava um leilão de dívida pública, os bancos compravam e depois vendiam ao BCE, com este a pagar com dinheiro de monopólio – aquele que o leitor tem de obter com o suor do seu trabalho. No final, quando o BCE recebia o pagamento de juros do Estado, devolvia-lhe uma parte a título de dividendos! Estão a ver: todos felizes!

Foi um préstito de apaniguados em festa! Até tivemos o Presidente do Conselho de administração – agora é mais pomposo chamar-se Chairman – da Bancarroteira Nacional a dizer-nos que era “hora de ligar as rotativas do BCE sem limites!”.

Enquanto as rotativas do BCE operavam sem limites durante a putativa pandemia, cada Euro do nosso bolso valia cada vez menos, operando-se a maior transferência de riqueza dos pobres e classe média para as castas superiores da sociedade, obviamente, tudo em nome do bem comum.

Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas (contratos futuros nas bolsas norte-americanas) entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

Entre o final de Março e 23 de Fevereiro de 2022 – atenção, antes do início da Guerra da Ucrânia -, as principais matérias-primas subiram exponencialmente nos mercados internacionais, como o Petróleo e o Gás Natural que subiram 351% e 169% respectivamente; mas parece que só deram conta do fumo expelido pela rotativa depois do início da guerra em nome da “liberdade e da democracia”.

Enfim, tratou-se de mais uma excelente peça de teatro, em que uma parte do gang simulou a sua indignação com a violência do assalto à população perpetrado pela outra parte. Passado uns dias, a borregada lá irá voltar à sua “vidinha” e encolherá os ombros sempre que as suas poupanças são assaltadas. O culpado, garanto-vos, nunca será identificado!

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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