Jean-Paul Sartre relacionou-se, de várias formas, com o cinema. Não o fez sistematicamente, nem com constância. Dado que foi a vários níveis que esse contacto se deu, de modo muitas vezes não explícito, parece-nos que é possível abordar as relações de Sartre com o cinema segundo duas perspectivas principais, ou seja, que melhor se harmonizam com o objecto a analisar.
Uma, panorâmica, que tenderia a fornecer uma perspectiva geral dos diversos tipos de aproximação que o filósofo francês praticou relativamente ao cinema; e outra que, procedendo por eleição de uma dominante, privilegiasse um desses tipos, tornando-o central.
Uma abordagem como esta segunda, tomaria, obviamente, as outras formas de contacto como secundárias ou até, mais organicamente, subsidiárias da dominante. Até certo ponto, é a este segundo modelo de abordagem que damos preferência, procurando compreender o modo como a importância atribuída pelo escritor ao cinema, notória, mesmo quando não explícita, em momentos e tipos de textos privilegiados de crítica literária, condicionou e influenciou a sua reflexão poética.
Numa perspectiva mais complexa, mas, também, mais rigorosa e completa, parece-nos importante dar atenção a esse processo de condicionamento e de influência encarando-o como uma prática em que o escritor tem uma função activa, na recepção do novo meio.
Sublinhamos, assim, o modo pelo qual o escritor Sartre se assenhoreou dos mecanismos discursivos do cinema, assumindo-os como procedimentos relevantes de uma poética da narrativa, capaz de entrar em diálogo com as que se forjaram a partir da literatura ou do teatro, e de sugerir a renovação dos procedimentos da narrativa verbal, nomeadamente a romanesca.
A opção por tal perspectiva deve-se ao facto de que nos parece ser importante ter em conta, na obra do escritor, a sua relação privilegiada com a palavra e o texto ficcional verbal. Assumimos, quando nos colocamos nessa perspectiva, que o elemento linguístico foi dominante, ou mesmo exclusivo, como elemento material, na actividade criativa de Sartre, e consideramos, em acréscimo, que sobre o poder representativo da palavra se debruçou atentamente o Sartre crítico e teorizante.
Ora, é tendo em atenção essa predominância que tomamos, como aspecto fundamental, sobretudo, o modo como o cinema inspirou ou ajudou a construir algumas das mais importantes conceptualizações do autor relativas à criação literária e, sobretudo, romanesca.
Acreditamos ser possível seguir um percurso paralelo ao nosso e verificar como, nas próprias criações literárias de Sartre, a narrativa se encontra marcada pelas leituras que o romancista terá feito, consciente e mesmo inconscientemente, do cinema e dos esquemas narrativos que ele patenteia como novidade para a arte do relato ficcional.
Contudo, acreditamos, até certo ponto, que essa prática não teria sido tão inspiradora e marcante para as vanguardas literárias como a sua actuação como crítico. Utilizando um exemplo, com muita brevidade e esquematismo, dado que voltaremos a ele adiante, como questão central da nossa argumentação, podemos dizer que é a leitura, enquanto crítico, que Sartre faz do romance americano, de Dos Passos, de Faulkner, de Hemingway ou de Sherwood Anderson, bem como o seu modo de ler “negativamente” La fin de la nuit, de Mauriac, ou entusiasticamente L’étranger, de Camus, que marca profundamente a inflexão tomada, daí em diante, pela narrativa literária francesa e, em eco, eventualmente, a narrativa de alguns escritores de países europeus e mesmo americanos – não tanto os dos Estados Unidos, é claro, como os da América Latina.
Por outro lado, parece-nos oportuno lembrar, desde já, um texto de Sartre que nos remete para uma espécie de equação, para algo similar ao desenvolvimento de uma fórmula racional a partir de um certo número factores dados, que nos sugere, por comparação, quase figurativamente, aquilo queremos apresentar como sendo o seu modelo privilegiado de reflexão poético-crítica.
É a um texto de Les mots que recorremos, por isso, antes de mais, dado aí ser central, para o narrador autodiegético, a relação do homem de palavras com os outros discursos, sobretudo os não verbais, ou com aqueles que só parcialmente o são.
Tudo isto, é claro, num processo de autobiografia reflexiva, incidindo, principalmente, sobre o “nascimento do escritor”. Não só emerge, no culto do cinema, uma visão da sociedade, das hierarquias e das classes, apreendida quase como um imperativo categórico de raiz emocional e afectiva, que permite ao autor afinar as categorias discretas do mundo, como se evidencia o culto da palavra, na sua demarcação e promiscuidade relativamente à imagem fílmica[1]. Somos quase levados a identificar, nos termos dessa paradoxal adesão, o oximoro de raiz afectiva.
“Ao meu defunto pai, ao meu avô, familiares dos balcões de segunda, a hierarquia social do teatro dera o gosto pelo cerimonial: quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos, ou então há chacina. O cinema provava o contrário, […] o seu público tão mesclado parecia reunido por uma catástrofe. […] Vi Zigomar e Fantomas, As proezas de Maciste, Os Mistérios de Nova Iorque: as douraduras estragavam-me o prazer. O Vaudeville, teatro fora de função, não queria abdicar da sua antiga grandeza: até ao derradeiro minuto, uma cortina vermelha de borlas de ouro mascarava a tela; davam três batidas para anunciar o começo da representação, a orquestra tocava uma ouverture,o pano levantava-se, as luzes extinguiam-se. […] Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte me pertencia, como a todos. Éramos, eu e ela, da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze e não sabia falar. […] Inacessível ao sagrado, eu adorava a magia: o cinema era uma aparência suspeita que eu amava perversamente pelo que ainda lhe faltava. Aquele fluxo rumorejante era tudo, era nada, era tudo reduzido a nada […]; mais tarde, as translações e as rotações dos triângulos lembravam-me o deslizar das figuras sobre a tela, amei o cinema até na geometria plana. Do preto e do branco, eu fazia cores eminentes que resumiam em si todas as outras e só se revelavam ao iniciado; encantava-me o invisível. Acima de tudo, gostava do incurável mutismo dos meus heróis. Ou antes: não eram mudos, já que sabiam fazer-se compreender. Comunicávamos pela música, era o rumor da sua vida interior. A inocência perseguida não se limitava a exprimir ou a mostrar a sua dor, impregnava-me dessa dor com a melodia que saía dela; eu lia as conversas mas ouvia a esperança e a amargura, surpreendia pelo ouvido a dor altiva que não se declara. […] não era eu aquela jovem viúva que chorava na tela, e, no entanto, ela e eu tínhamos uma só alma: a marcha fúnebre de Chopin[…]. Como eram felizes aqueles caw-boys, aqueles mosqueteiros, aqueles polícias: o futuro deles estava ali, naquela música premonitória, e governava o presente, um canto ininterrupto confundia-se com as suas vidas arrastava-os para vitória ou para a morte […] o entrecruzamento de todas essas imagens, de todas essas velocidades e, em baixo, a corrida infernal da «Corrida para o Abismo», trecho extraído da Danação de Fausto e adaptado para o piano, tudo isso era uma só coisa: o Destino.[…] Decidi perder a palavra e viver em música” (s/d [1964]: 90-93).
Uma tão longa citação justifica-se. De facto, parecem-nos estar patentes, nos enunciados que recolhemos de um excerto bastante coeso, do livro de Sartre que mais se assemelha a uma autobiografia, dois aspectos centrais de uma reflexão poética, que, conjecturamos, o filósofo francês terá aprendido como espectador de cinema: o facto de uma forma de linguagem ficcional ou mimética estar em estreita relação com os códigos e valores culturais que lhe enformam a enunciação; e a evidência de a narrativa cinematográfica ser contrapontística e temporal, ou seja, assentar no valor opositivo e dinâmico da montagem e da sequencialidade das imagens visuais, de tal modo que se lhe afigura como semelhante à sintaxe musical – confundindo-se mesmo com esta.
A imagem mental percebida no cinema é, assim, uma espécie de despojo diurno, retalho de ícones, acções e falas, de que se alimenta o próprio devaneio fantasista do narrador autobiográfico, como ele reconhece algumas páginas adiante, no mesmo texto, quando se recorda de si próprio, na infância, encarnando heróis extraordinários, em mímica solitária, na penumbra do quarto onde a mãe tocava piano (p. 94).
Tudo se passa, aparentemente, como se a enunciação cinematográfica se originasse num dizer proveniente de um “fluxo rumorejante” que “não se limitava a exprimir ou a mostrar a dor” da personagem, mas, sobretudo “impregnava” o narrador da “dor com a melodia que saía dela”. Além do mais, parece-nos curioso reter o facto de o fluir das imagens se associar à música, sendo representado por estas, no imaginário de Sartre, um sistema de referências de valor mítico. O facto é tanto mais curioso quanto, no seu texto, L’imaginnaire, a imagem cinematográfica não ser referida pelo filósofo francês, sendo, curiosamente, a da música valorizada como representação preferencial do devaneio, logo a seguir ao teatro e à pintura. (cf. Sartre, 1966: 150 e 362-371).
Essa substituição – metafórica, do nosso ponto de vista – preconiza, num funcionamento que resumimos sob a designação conceptual de premonição esquemática, o modo como se torna inconsciente, ou mesmo recalcada, a aprendizagem do modelo de enunciação que acima referimos. O entendimento do cinema que Sartre desenvolve, desde a infância, enquanto forma expressiva que marca profundamente o seu discernimento estético, assenta no modelo que a memória narrativa de Les mots desenterra da do passado.
Esse esquema associativo funciona, nele, como um imperativo categórico: dita-lhe um modo de conceber e entender o tempo e o ritmo da narrativa, ou até mesmo a instância enunciativa da narrativa romanesca, mas mantém-se “i-nomeado”, como que em ângulo cego, ou inconsciente. É como se o emergir teórico do seu discernimento, educado pelo cinema, mantivesse, em amnésia, a matéria em que o seu critério poético se funda funcionando como premonição esquemática. Julgamos útil darmos um exemplo do modo como se evidencia essa sua aprendizagem, mesmo quando não diz a sua origem, de acordo nossa congeminação de o Sartre crítico e teórico da literatura ser, como leitor, um atento observador das formas e dos procedimentos do cinema, incorporando a poética do filme numa recepção activa, mesmo quando não explícita.
Assim, tendo em vista reforçarmos o nosso argumento, parece-nos avisado citar alguns passos da apreciação crítica que o escritor francês faz de alguns romancistas, sobretudo americanos. Sobre John Dos Passos, por exemplo, afirma [1938]:
“Fez tudo para que o seu romance parecesse apenas um reflexo [porque] a sua arte pretende ser demonstrativa […]: mostrar este mundo, o nosso. Mostrá-lo simplesmente, sem explicações nem comentários” (Sartre, 1968: 14). A tónica é colocada num determinado processo de enunciação que Sartre parece ter sido dos primeiros, entre os críticos franceses, a realçar como procedimento narrativo específico, moderno e valorizável pelas características que o distinguem. Antes de o nomearmos, para melhor o distinguirmos, convém observar como ele é recorrente, ainda que matizado, nos textos de crítica literária do escritor francês. Assim, por exemplo, sobre o modo de Dos Passos apresentar os acontecimentos, diz-nos o crítico: “O acontecimento do romance é uma presença inominada: não se pode dizer nada dele porque se está a fazer […]: em nenhum momento se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada[…]. Mais um passo e tornaríamos a encontrar o famoso monólogo do idiota de O som e a fúria. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível” (1968: 16-17). De tal modo o predomínio do mostrar é decisivo como técnica detectada pelo crítico que, mesmo quando julga vislumbrar a opinião, ele a vê como que emergindo sob o regime do cénico no sentido luboquiano do termo, forma do espectáculo mostrado mas não dramatizado (cf. Lubbock, 1926: 67-69). Assim, lemos em Sartre: “Dos Passos finge que nos apresenta gestos como acontecimentos puros, como simples exterioridades, os livres movimentos dum animal. Mas é apenas uma aparência: de facto adopta a opinião pública para nos expor o ponto de vista do coro” (1968: 20).
A expressão final do enunciado acima citado fornece-nos a designação do conceito que aqui está em causa, como categoria fundamental do processo narrativo: o ponto de vista.
A questão de fundo que, quase sempre, se coloca, relativamente ao ponto de vista ou focalização, é a da localização e amplitude gnómica da perspectiva adoptada. Podemos ainda acrescentar, depois do conhecimento que a narratologia desenvolveu sobre a matéria, desde os anos 30 do século passado até hoje, que é quando a perspectiva ou focalização se torna restrita, quando ela corresponde ao exercício tecnicamente vigiado de uma tomada vistas, que a questão se torna conceptual e teoricamente interessante para o romance. É então que o romancista procede tal como a fotografia ou o cinema fazem, inevitavelmente, para existirem simplesmente.
Ou melhor, para nos situarmos no cerne da questão tal como ela é vivida por Flaubert, Henry James e, em geral, o romance modernista de pendor mais ou menos naturalista: o que está em causa é o assumir, pela narrativa, da perspectiva monocular, já com um passado clássico na pintura, e reformulada, como problemática actual para os artistas do século XIX, sobretudo de Courbet a Cézanne.
Com essa problemática são incorporados, como tópicos importantes para a narração, todas os motivos e conceitos que esse aparato de visão do mundo arrasta, sobretudo depois da afirmação da sua modalidade de dispositivo mecânico tal como emerge sob a forma de câmaras fotográficas e, mais tarde, de cinema.
Sem enunciar nunca esse mecanismo, comentando sempre as narrativas que critica como se nunca lhe ocorresse o funcionamento dessas máquinas óptica feitas exclusivamente para captarem espaços, gestos e cenas como pontos de vista singularizados e neutros, Sartre parece falar delas em perífrases.
Numa crítica ao romance Sartoris,de Faulkner, contemporânea da que citámos acima, sobre Dos Passos, datada também de 1938, diz-nos Sartre: “[…] Deixei de poder aceitar o homem de Faulkner, é um trompe-l’œil. É uma questão de iluminação. […] Quando esperamos tempestades são-nos mostrados gestos, demoradamente, minuciosamente. […] Aqui, os gestos (calçar as botas, subir uma escada, montar a cavalo) não pretendem mostrar, mas esconder. Observamos tudo o que possa revelar a perturbação […] mas os Sartoris nunca se embriagam, nunca são atraiçoados pelos gestos” (1968: 7-8).
A omissão que Sartre pratica, relativamente às máquinas de captar imagens, parece-nos formular-se como gritante ausência num discurso tão cheio de dissimulação como o que ele encontra em Faulkner: tudo se passa como se as longas descrições que faz, do modo como os romancistas americanos praticam as captações gestuais e cénicas, servissem mais para ocultar o mecanismo implícito como modelo do processo de construir a focalização, do que para o revelar.
O texto que escreve em 1968, sobre L’engrenage, que publicou como guião, em 1948, revela que ele próprio reconhecia que a técnica do ponto de vista apontava para uma ligação entre o cinema e o romance: “O argumento de L’engrenage foi escrito em 1946. O que me divertia, inicialmente, era transpor para o ecrã uma técnica que os romancistas anglo-saxónicos utilizavam frequentemente antes da guerra: a pluralidade dos pontos de vista. A ideia estava no ar… No filme que eu imaginava não só a cronologia se encontrava alterada como a própria personagem, Hélène, aparecia sob aspectos exteriores diferentes, de acordo com o ponto de vista que a apresentava” (1996: contracapa).
Não está Sartre a falar do procedimento básico do cinema, quando fala da pluralidade de pontos de vista? Não seria extraordinário que o fizesse, dado que, além do guião já citado, que nunca foi posto em filme, Sartre escreveu alguns que foram realizados cinematograficamente, nomeadamente, Les jeux sont faits, de Delannoy e Freud, de John Huston.
O que nos parece curioso e sintomático é que Sartre, sendo obviamente um intelectual conhecedor do cinema e dos seus mecanismos, fale da transposição para o ecrã da pluralidade dos pontos de vista, depois de Citizen Kane (1941), como se fosse sugestão sua. Inverte o percurso, mesmo em 1968, daquilo que toda a crítica, já então, seguindo as próprias sugestões críticas do Sartre de 1938, considerava, pelo menos desde Claude-Edmonde Magny em L´age du roman americain, uma influência decisiva do cinema sobre o romance.
É claro que poderá ser evocado, aqui, o precedente da crítica anglo-saxónica, quando preconiza, desde Henry James, que “a arte do romance começa apenas quando o romancista pensa na sua história como uma matéria a mostrar, de tal forma que ela se contará a si mesma” (Lubbock, 1926, 62; cf Bourneuf e Ouellet, 1976: 109-110) ou quando preconiza que “o autor” pode falar “através de uma das pessoas do livro” (Lubbock, 1926, 68).
Essa será, aliás, a tónica de Sartre quando avalia a arte de Mauriac, negativamente [1939]. Vale a pena citar um passo para que se veja o fundamento da apreciação: “A consciência da protagonista [que Mauriac apreesenta – Thérèse] representa o binóculo graças ao qual o leitor pode lançar uma olhadela ao mundo romanesco e a palavra «ela» dá a ilusão dum recuo do binóculo; lembra que esta consciência reveladora é também personagem de romance, representa um ponto de vista privilegiado e realiza para o leitor este voto caro aos amantes: ser ao mesmo tempo ele próprio e outro distinto de si […] Mauriac aproveita-se desta indeterminação para nos fazer passar insensivelmente dum ao outro aspecto de Thérèse […]: «Ela não podia não ter consciência da sua mentira: contudo apoiava-se nela». Esta frase mostra bem a traição constante que Mauriac exige de mim” (Sartre, 1968: 37-38).
Este excerto é de extrema importância para os factos que aqui queremos observar, por ser representativo de duas tendências que se conjugam, em Sartre, de modo extremamente problemático: a tendência tradicional da crítica francesa, e a nova tendência, que se constitui como prelúdio àquilo que Barthes virá a chamar nouvelle critique. A primeira tendência subdivide-se em duas frentes: a académica e a impressionista.
A primeira dessas frentes preocupava-se, sobretudo, com a génese das obras, ou com a dimensão filosófica que a obra teria na época que a vira nascer, e a segunda atendia, sobretudo, aos aspectos morais ou psicológicos. Quanto à nova tendência, tal como o fará, alguns anos mais tarde, o estruturalismo emergente da nouvelle critique, interessava-se pelos problemas postos pela questão ponto de vista na narrativa.
Deve notar-se que esta última tendência, nos anos 30 do século XX, ainda era pouco mais do que novidade na crítica anglo-saxónica, e ainda estava incipientemente teorizada pelos formalistas russos. Ora, Sartre julga as dimensões genéticas, filosóficas, éticas e psicológicas do romance de Mauriac, praticando os objectivos da tradição, mas, para o fazer, aplica observações que se fundamentam, sobretudo, na sensibilidade que crítico tem à manipulação do ponto de vista.
Não nos deve ser indiferente registar, também, acompanhando ainda essa mesma ordem de ideias, que, alguns anos depois da publicação dos artigos de Sartre sobre os romancistas americanos e Mauriac, que acabamos de citar com alguma brevidade, se multiplicam “os artigos assinados por Albert Laffay e Doniol-Valcroze” que enfatizam, sobretudo, a questão do ponto de vista.
O que é digno de registo, em sequência do que vimos argumentando, é o facto de se constatar que esses artigos são “frequentemente influenciados pela filosofia sartriana” e, simultaneamente, “inspirados pela estética comparada do romance e do cinema” (Bourneuf e Ouellet, 1976: 111).
Bourneuf e Ouellet registam ainda como importante concomitância aos fenómenos acima referidos, para enfatizar a importância crescente do interesse pelo estudo do ponto de vista na narrativa, a publicação de L’age du roman américain de Claude-Edmonde Magny, em 1948. De facto, a primeira metade dessa obra intitula-se «Romance americano e cinema» e, nela, podemos encontrar muitos argumentos que parecem decorrer directamente das observações que Sartre havia feito uma década antes sobre o romance americano.
Para terminarmos estas notas, que ficarão apenas como um roteiro para uma futura investigação, gostaríamos de relembrar, algumas palavras de Sartre sobre Dos Passos que acima citámos, para as confrontarmos com outras e, em seguida, comentarmos os dados observáveis nesse confronto: “[nunca] se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada […]. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível”.
Acrescentaríamos a esta palavras, aqui reformuladas em síntese, os seguintes comentários de Sartre sobre Camus: “O que [Camus] aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo.
Agora compreendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente” (1968: 103). As palavras de Jean Bloch-Michel que, entre outros romances modernos, comentam L’étranger, de Camus, procurando apresentar os denominadores comuns ao romance moderno, poderiam servir de comentário historicamente reflectido às sugestões de Sartre: “O cinema criou uma nova espécie de narrativa que tem, nomeadamente, como particular, o facto de a sua sintaxe comportar apenas, pela força das coisas, um modo e um tempo: o indicativo presente […] Todas estas características da narrativa visual se encontram na literatura de hoje. Antes de mais esse obsessivo presente do indicativo que é o único tempo utilizado, aliás, e a cuja monotonia fatigante se acrescenta a da apresentação objectiva dos factos” (1963: 97-98).
Uma tal proposta crítica, apresentada já em época de aprendizagem da nova crítica, na qual já se esboça a referência, enquanto horizonte, ao estruturalismo, ecoa, de algum modo, um comentário feito por Sartre a Camus, no texto já por nós citado, publicado, originalmente, vinte anos antes: “o procedimento de Camus é muito rebuscado: entre as personagens de que fala e o leitor, Camus intercala um tabique de vidro. […] O vidro parece deixar passar tudo e só intercepta uma coisa, o sentido dos gestos. Falta escolher o vidro: será a consciência do Estrangeiro. É, com efeito, uma transparência: vemos tudo o que ele vê. Simplesmente, foi construída de maneira a ser transparente para as coisas e opaca para os significados […]. Alguns homens dançam atrás de um vidro. Entre eles e o leitor interpôs-se uma consciência, quase nada, uma pura translucidez, uma passividade pura que regista todos os factos” (1968: 101-102). Este vidro não poderia ser o da objectiva e, então, o modo de Sartre falar nele apresentar-se como outro circunlóquio, no qual o objecto obsessivamente latente fica, mais uma vez, esquecido?
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Bloch-Michel, Jean, 1963, Le présent de l’indicatif, Gallimard, Paris
Bourneuf, Roland, e Réal Ouellet, 1976, O universo do romance, Almedina, Coimbra
Lubbock, Percy, 1926, The Craft of Fiction, The Travellers’ Library, London
Sartre, Jean-Paul, s/d [1964], As palavras, Unibolso, Lisboa
Sartre, Jean-Paul, 1966, L’imaginaire, Gallimard, Paris
Sartre, Jean-Paul, 1968, Situações I, Europa-América, Lisboa
Sartre, Jean-Paul, 1996, L’engrenage, Folio/Gallimard, Paris
[1] Citamo-lo, como os outros textos do autor que aqui apresentamos, em português, pela maior homogeneidade que o uso de uma só língua permite ao discurso expositivo.