ELUCUBRAÇÕES

Autor, autenticidade e plágio

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por Carlos J. F. Jorge // Julho 16, 2022


Categoria: Cultura

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Quando Machado de Assis, no comentário crítico que fez a O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, acusou este último romance de ser uma simples imitação de La Faute de l´Abbé Mouret, iniciou um processo  retórico de restrições nos códigos de leitura do romance criticado cujas consequências, do nosso ponto de vista, dificilmente poderão ser alteradas.

Entre estas, a mais evidente é a que leva a associar quase sempre ao romance de Eça a questão do plágio. Contudo, não se trata de uma acusação evidente de plágio a que fez o mestre brasileiro. O processo, como veremos melhor, é insidioso e ambíguo. Em grande parte, podemos admiti-lo, os resultados da acusação foram os esperados por Machado de Assis. Contudo, a dimensão das consequências, na sua globalidade, talvez tivesse ultrapassado não só as expectativas do crítico como as dos leitores seus contemporâneos.

Machado de Assis (1839-1908)

De certo modo, o desenvolvimento da nossa argumentação será avaliar, fugindo o mais possível à simples apologética, o conjunto de problemas que o comentário  do escritor e crítico brasileiro levantou, bem como procurar perspectivar, do ponto de vista da teoria da literatura, a importância do conceito “plágio” no interior das abordagens científicas que buscam o conhecimento da literatura.   

Parece-nos indiscutível que a acusação feita por Machado de Assis a Eça de Queirós, sendo literalmente a de “imitação”, foi, de imediato, lida por outros contemporâneos, detractores e apologistas, como “plágio”.

Junto com a utilização do termo “imitação”, Machado de Assis introduz outra observação crítica restritiva – a da obediência à “escola”. Sendo a figura tutelar evocada a do chefe de escola, Zola, não é absurdo presumir que o complexo problema que Machado suscita com a sua crítica seja o da mimesis entendida como prática de obediência a um cânone, ou seja, as práticas artísticas segundo a maneira de um mestre que representa uma linhagem, podendo isso ser entendido como incapacidade criativa, ou impossibilidade de originalidade.

Contudo, não nos parece que o escritor brasileiro estivesse a apelar para um princípio em que a originalidade tivesse de   vir a manifestar-se a partir do nada. Como matéria-prima para a reelaboração, na criação original, ele sugere a “tradição”, entendendo-a não como os ditames de uma escola, mas antes como as indicações difusas a abstrair da prática de mestres que teriam fundado os grandes valores nacionais, entre os quais os do engrandecimento da língua.

A língua fica entendida, assim, como um reduto patriótico manifesto por alguns discursos literários modelares portadores de valores ideológicos “adequados” a qualidades que se harmonizam, segundo esse decorum, com qualquer coisa como uma alma ou espírito da pátria que se exprime na língua. Que essa língua não seja um sistema, mas, antes, os discursos de autores inseridos no movimento romântico apenas nos vêm mostrar como a acusação de plágio (dita “imitação”, insistimos) tem muito mais a ver com o modelo seguido do que com o facto de se ter seguido um modelo. É relevante, ainda, que Machado tenha necessidade de caracterizar o modelo “imitado”, mas prefira silenciar os traços discretos dos modelos que se deveriam seguir.

Basicamente, parece-nos, o indiscutível formula-se, sobretudo, pelo não explícito, pelo aludido e difuso. A crença é  o grau máximo da ideologia que tem o fundamento no que se sabe sem formulação, sem explicitação. É nesse interstício de obscuridade que a “certeza estética” formula o seu cânone como um panteão de entidades que não se discutem, que emanam valores de fundação e sobre os quais assenta, inquestionável, a tradição.

O que se evidencia, deste modo, é a problemática renovada de um questionamento milenário no interior da literatura: o da mimesis. Convocá-lo, de novo, para emitir apenas formulações ou reformulações no interior da teoria da literatura, pode ser interessante para observar o estado da ciência literária (essencialmente o conjunto ordenado disciplinarmente dos discursos sobre a literatura, utilizando uma metalinguagem teórica), mas talvez não adiantássemos muito relativamente ao mestre grego da Poética. Contudo, a observação dos elementos comparáveis de duas obras, uma das quais foi acusada de ser plágio da outra, coloca-nos no interior de uma problemática literária que nos parece ser extremamente produtiva.

Defrontando-se duas poéticas no horizonte dessa acusação, podemos formular através dela e da polémica que gerou quais os horizontes que se abriram num primeiro estádio de teorização – o das argumentações das escolas nas formulações (e práticas) dos princípios genéricos que regeram as suas produções.

Observar – no sentido em que fala Mignolo (1989:48) – é darmo-nos como tarefa perspectivar as nossas condutas (neste caso literárias) e as de outros seres humanos, como domínios de estudo, nomeadamente as reflexões que fazemos sobre a actividade literária, quer como escritores quer como leitores.

É nesse sentido que nos parece importante e produtivo determo-nos na observação das práticas artísticas como práticas de relação no interior da série literária (entendida como relação de sequencialidade onde se manifestam relações de intertextualidade), bem como os contextos de outras séries (artísticas, culturais, científicas, políticas) com as quais os fenómenos em questão mantiveram relações interdiscursivas (por exemplo, o anticlericalismo, o discurso político, o discurso científico).

Esse domínio, ainda que teoricamente bem delimitado, raramente é aprofundado relativamente a objectos concretos que emergem da prática literária. Os casos de reescrita, de imitação, de reformulação de um mestre, ainda que reconhecidos, são eufemisticamente evitados porque, pensamos nós, ao estabelecer-se a relação em profundidade diminui-se o valor de originalidade do autor que se diz ser “imitador”.

Por nossa parte, julgamos que, indo francamente ao encontro de um caso de “plágio” várias vezes afirmado (e refutado ainda mais vezes), vamos tocar no cerne de uma prática que desde há muito se chama mimesis (a mimese aristotélica, neste caso)e que, inevitavelmente, se tem traduzido (e entendido, portanto) por imitação e por representação.

Eça de Queirós (1845-1900)

Esta dupla tradução (e compreensão) remete-nos para a factualidade fascinante do problema: a de que a feitura de um universo textual literário se realiza por operações de  representação (o erguer de um mundo ficcional – narrativo, lírico ou dramático), ou seja, de um objecto que, não sendo o mundo empírico, tem valor de mundo, apesar de tudo; e que, inevitavelmente, essa representação se faz segundo a obediência a processos de reconhecimento, aos códigos e modelos que permitem as relações do homem com o mundo, e dos homens entre si.

Se posso dizer o mundo, de um modo que é possível transmitir a outro homem que mundo é esse de que falo, também é possível construir segundo processos semelhantes um mundo alternativo, porque as regras de construção para representar e simbolizar são, elas próprias, reconhecidas e transmitidas.

Sendo assim, pode ler-se uma obra, sobretudo romanesca ou teatral (onde o nível da fábula seja dominante), como o espaço textual em que uma representação de mundo tem uma certa singularidade fenomenológica extra-verbal. Uma convicção forte, nesse sentido, pode argumentar que um romancista, por exemplo, cria um mundo reconhecível e estável no seu romance, de tal forma que toda e qualquer leitura o constituirá como fenómeno sempre idêntico ao de todas as outras leituras praticadas.

Pensamos que isso é verdade, em grande parte, e que é por essa razão que dois leitores distintos podem discutir com coerência (e com proveito, na esfera dos valores antropológicos projectados) o comportamento de Amaro, julgando-o, e, na sequência dessa discussão, pôr em confronto esse juízo com o que se formula sobre Serge na leitura de La Faute. Contudo, o abuso de uma tal perspectiva pode ser empobrecedor da compreensão que nos deve merecer o modo como cada autor constrói o seu mundo-fenómeno.

A semelhança do representado não deve apagar a singularidade do processo de representação. O plagiador, para uma perspectiva que apague o dizer pela enfatização do dito, seria aquele imitador cuja obra não seria uma autêntica representação (capaz de remeter para o mundo – mantendo-se na sua alteridade como possibilidade de uma realidade nova) mas sim uma imitação em que o que ficaria patente não seria o mundo mas o gesto imitador[1].

Não seria autor (gerador de mundos representados) mas simulador (reprodutor de imitações). Para nos reportarmos aos termos da semiótica decorrente de Peirce, poderíamos dizer que tal crítica veria o escritor “autêntico” como criador de referentes unívocos emergentes dos significados da sua obra e o plagiador como um mero reprodutor de referentes alheios. Quase sempre, como se verá, as opiniões que vêem em Eça um autor fraco em “invenção” padecem desse tipo de reducionismo.

O curioso, numa polémica de escolas ou de modelos autorais, é verificar através dela como o desenvolvimento literário se tem sempre realizado por confronto entre as regras e os modelos resultantes dessas regras. Um discípulo genial, diria Bloom (cf.1973:5), participa da “história poética”, na medida em que se relaciona com a sua figura tutelar por uma influência, no domínio da qual pratica uma má-leitura (misreading). O que nos colocaria perante a hipótese de o plagiador ser eventualmente o discípulo fiel, o que apenas lê bem, não “cria” a partir do erro ou da má leitura.  A esta dimensão estimulante de uma interpretação psicanalítica do processo histórico-literário, aqui fica, apenas, a sugestão.

Dentro destes horizontes que postulamos, parece-nos interessante e pertinente ver qual a matéria imitada quando se percebe (numa leitura posterior) o plágio; qual o valor de tal conceito no interior da reflexão e da observação teóricas; e, essencialmente, dentro dessas valorizações (ou desvalorizações) assim formuladas, como se manifesta o processo da mimesis que, inevitavelmente, emerge persistentemente quando se aborda um processo de relação intraliterária tão intenso que se assume ser plágio.

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É evidente, logo que a questão se coloca, que a entidade fundamentalmente posta em causa é a do autor. Ele é entendido quer como criador de mundos quer como proprietário de uma matéria verbal que representa esses mundos. A entidade autoral, contudo, põe-nos vários problemas teóricos e metodológicos.

Por um lado, a nossa opção de comparação dos elementos textuais recomenda-nos que, para falarmos à vontade sobre a existência ou não de plágio, confrontemos tão minuciosamente quanto possível os textos que estão em causa. Só segundo essa análise, nível a nível, é possível dizer se há ou não aproximação de elementos textuais nas obras consideradas que nos permita falar de uma semelhança que, a não ser total eipsis verbis, pelo menos se aproxime quantitativamente dessa totalidade de semelhanças, elemento a elemento, ou inversamente, por não existir, nos permita refutar tal hipótese.

Para efectuar essa análise temos de recorrer, forçosamente, a modelos teóricos de compreensão do texto literário e, nomedamente, de narratologia.

Ora, acontece que as propostas teóricas formalmente mais seguras  de abordagem do texto narrativo que conhecemos, nomeadamente as de Genette (1972) e de M. Bal (1987), por imperativo de abordagem do texto afastam do centro das suas preocupações a questão do discurso. Entendemos por discurso, neste caso, a produção textual como acto retórico, histórica e socialmente inserido e enquadrado. A figura que imediatamente é anulada é a do autor, dado que, como Genette estabelece, o acto narrativo que o narratólogo (poeticista ou teórico do texto literário narrativo) estuda é o do narrador (cf. 1972:73).

Se Genette, cautelosamente, considera que o estudioso e teórico da narrativa deve ter apenas em conta a narração na sua relação com a narrativa, encarando a produção autoral como um facto histórico com que a teoria da literatura não tem de se preocupar primordialmente, M. Bal inclui totalmente a enunciação narrativa no texto, considerando que seja qual for a voz que origina a narrativa ela se designa apenas por narrador dado que a referência ao autor arrasta de imediato ora a entidade histórica extra-literária, ora o risco de se confundir a inferência resultante da leitura com a “fonte” do significado do texto (cf. 1987:125:126).

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O facto de assentarmos nos conceitos utilizados por estes autores a base da nossa metodologia para a comparação, por nos parecer que eles são quem nos fornece a melhor “gramática” do texto narrativo – a que resolve com maior simplicidade e rigor o maior número de problemas textuais que a narrativa literária nos coloca – arrasta-nos, inevitavelmente, para que também nós pratiquemos, com alguma má consciência, uma excessiva minimização da entidade autoral.

Essa impressão de incompletude não se manifestaria se, no caso presente, a minimização do autor não se revelasse paradoxal e incómoda para a abordagem de quase todos os problemas que o plágio levanta. Com efeito, se alguém é acusado de plágio é Eça de Queirós e não o narrador textual de O Crime do Padre Amaro.

Se alguém se revela leitor de Zola (e não leitor do narrador de Zola apenas) é Eça. Se existem três versões de O Crime não podemos atribuir tal facto a uma entidade textual, de “papel”, que se tivesse rebelado contra o autor histórico, demoniacamente roubando-lhe o texto para o reescrever nos universos textuais em que existe.

Perante tais factos, não podemos deixar de ter em conta essa entidade, incómoda para uma abordagem formal do texto, mas fundamental para a compreensão do discurso, das suas estratégias retóricas e para compreensão do próprio texto como entidade histórica. Por isso, evidentemente, as abordagens que fazemos ao relacionamento dos textos de Eça e de Zola com os outros discurso da época e com as correntes filosóficas e as mentalidades do seu tempo têm em conta a actividade do autor como escritor.

No entanto, mesmo reconhecendo tais factos, não é nossa intenção  reactivar o “fantasma” herdado da crítica oitocentista – fantasma esse que resulta, em grande parte, de uma teorização radical e aberrante da entidade autoral pela qual os naturalistas tanto se bateram – que surgia como guardião do sentido unívoco do texto, obviamente. Esse autor, misto de entidade histórico-biográfica e de autoridade enciclopédica, não nos faz falta no centro de nenhuma perspectiva segundo a qual queiramos abordar o texto ou o discurso literário com alguma segurança teórica.

Quando muito, tal figura existencial e “pedagógica” completa, dentro de um saber especializado (filológico ou de crítica textual), o autor que inevitavelmente temos de postular na origem de um texto. Ou seja, para retomarmos os termos que Adam (1985) emprega na sua concepção que, embora de raiz bakhtiniana, deve bastante à formulação de Lintvelt (1981), o autor concreto é uma entidade do mundo capaz de, entre outras coisas que normalmente não sabemos, ter uma determinada experiência afectiva, intelectiva e cultural que directamente o leva a interessar-se pela literatura, a actuar, por hipótese, como transformador do horizonte de expectativas do leitor concreto (cf. Adam, 1985: 174).

Eça é um caso que, quanto a esse aspecto, nos pode servir de exemplo, dado ser uma entidade histórico-cultural concreta que efectuou tal operação no universo específico da literatura e da cultura portuguesas, pelo menos. Não poderíamos postular a sua posição intencional no naturalismo, a subjacência de uma tese sobre a doutrina cristã e a natureza em O Crime, sem abordarmos a sua identidade histórica, politicamente empenhada.

No entanto, a entidade autoral fundamental definida por Adam no mesmo local é a de autor abstracto. É ela que, de um modo geral, define a ideologia da obra (Adam, 1974:175). Contudo, é bom notar-se que se essa entidade resulta como momento final da actividade de escrita, ela depende também da construção feita pela leitura. Mas não podemos, ainda assim, cavar um fosso entre um autor concreto e historicamente determinado, e um leitor que escapasse, por ser uma entidade sobretudo discursiva ou mesmo textual, à actividade autoral concreta.

Entre o autor compreendido como aquele que escreve e o “eu que apenas se manifesta nos seus livros”, como defende Proust em Contre Sainte-Beuve (cf. Adam, 1985:174), existe o autor-leitor que constrói a sua intencionalidade literária lendo outros e lendo-se a si; transformando e assimilando textos de outros e os seus próprios; persistindo num trabalho de escrita e de reescrita que é forçar o seu querer-dizer como trabalho de escrita-leitura-crítica-reescrita – fundando uma rescrita que é, no fundo, um escrever novo no exercício só aparentemente repetitivo de escrever de novo.

Só desse modo podemos perspectivar a actividade que vai da génese de um texto (os planos, os esboços – em Zola – as versões – em Eça)  que não é conjectural mas documentada (o material genético de Zola e de Eça), ao texto final que diz de outro modo o já anteriormente dito.

Emile Zola (1840-1902)

Se concordamos na quase totalidade com a posição de Foucault, quando diz que “a função autor é […] característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”[2], devemos notar que é a geração naturalista que dá a essa função um estatuto poderoso pelo menos na articulação argumentativa de uma ética profissional com os códigos de propriedade que os românticos defendiam.

É ela que arranca a função à esfera mítica da criação espiritual, para a fazer coexistir com outras formas sociais de trabalho reconhecido, valorizável na sociedade capitalista como produto integrável no circuito das mercadorias – ou então como resultado de uma actividade procriativa, existindo como bem do mesmo modo que existe a prole. Quanto a este último aspecto é muito curioso o que Oliveira Martins diz de O Crime, considerando-o o único romance que Eça “trouxe no ventre” (cf. Fialho de Almeida, 1923:138). Por essas razões, embora pensemos que a função autor resulta parcialmente de uma mitificação, ou pelo menos de uma operação ideológica de fundamentos político-económicos desenvolvida na sociedade europeia a partir do romantismo, reconhecemos nela, também, uma realidade cultural, ética e psicológica.

O romancista (ou qualquer outro escritor) empenha-se, de facto, dramática, emocional e cognitivamente, na produção da sua obra. Que isso não lhe dê direito de ser o guardião do seu sentido é perfeitamente aceitável, nos termos de qualquer crítica que tenha sido atenta aos argumentos do formalismo russo e do estruturalismo francês, pelo menos.

Mas parece-nos que, apesar de tudo, o autor tem uma palavra importante a dizer sobre esse mesmo sentido. E isso, se é verdade para qualquer escritor, em qualquer época, mais verdadeiro se torna para uma geração como a naturalista, tão atenta à escrita como ofício, à circulação económica, cultural e retórica das suas produções.

Enfatizamos essa dimensão da entidade autoral, tanto quanto isso nos é possível, num ponto que integramos dentro da questão da temática. Procuramos desenvolver aí a representação que os naturalistas faziam da entidade produtora do discurso, em paralelo com as concepções do mundo e as perspectivas ideológicas que os seus textos narrativos apresentam através das estruturas narrativas e segundo os processos de narração assumidos.

Também na análise do nível da narração, a questão autoral surge de novo para aí tentarmos relacionar os dados do texto com a problemática da enunciação autoral. A atenção reduzida  que o nosso modelo de análise nos levou a dar às instâncias extra-textuais  conduziu-nos, quase sempre, à menção da entidade textual mais facilmente formalizável de narrador, mesmo quando o que estava em causa era o campo de cognição do autor – pelo menos de acordo com o que os cotextos das restantes produções dos autores em causa ou o contexto dos discursos da época nos deixavam perceber.

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Entre um problema epistemológico de fundo que se nos colocava e a metodologia, que nos parece fundamental para estabelecer com o mínimo rigor os objectos-textos, optámos pela salvaguarda da última, em detrimento do primeiro. Registámos quando abordámos a narração, no entanto, a presença dos índices da entidade autoral que, provisoriamente, não tomámos em devida conta. Esbarramos, evidentemente, com a incómoda sobreposição que também Carlos Reis e Mª do Rosário Milheiro já tinham assinalado ao tratarem do material genético relativo a A Ilustre Casa de Ramires:           

“Não se trata aqui de confundir o narrador extra-heterodiegético com o escritor Eça de Queirós, confusão que, no plano estrutural e semiodiscursivo seria inaceitável. Mas trata-se de sugerir que, no plano da criação literária propriamente dita – abarcando também o seu suporte expressivo, que é a elaboração estilística do discurso -, a esse nível, não pode deixar de estar presente o escritor Eça de Queirós, sujeito de uma escrita desenrolada no âmbito ontológico da realidade, mas potencialmente homóloga daquela outra escrita que, com o seu cortejo de hesitações, sacrifícios e artifícios, Gonçalo desenrola no domínio ontológico da ficção”. (Reis e Milheiro, 1989:111)

Atendendo ao conjunto das razões acima apresentadas, tomamos a figura do autor tal como ela se constitui pelo próprio discurso autoral, quer no modo como se relaciona com a instância narrativa extra-heterodiegética  (o narrador, tal como ele emerge na semiótica de raiz estruturalista e, muito em   especial, na poética ou teoria narratológica de inspiração genettiana) quer na actividade paratextual que os próprios romances suscitam.

Ou seja, atentamos muito especialmente no modo como o escritor ora se projecta no narrador ora o constrói como “voz”, a cautelosa distância, relacionando essa mesma enunciação com a das restantes vozes, ou com os pontos de vista variáveis que se manifestam na diegese – e procuramos ver como todo o trabalho autoral contextualmente colabora na construção do sentido, pela inserção  da dimensão scriptor ( o escritor como função, digamos) no espaço social, demarcando, aí, o lugar da sua obra, criticando outras obras, anunciando as suas a partir dos seus trabalhos preparatórios, fazendo saber os temas dos seus romances, respondendo a críticas e, muitas vezes, reescrevendo os seus próprios textos.

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De facto, não temos podido desenvolver, por causa dos objectivos e  limites do nosso trabalho, uma abordagem que tenha em conta uma teoria da enunciação na narrativa (uma teoria da narração em sentido pleno) como base dominante, optámos por problematizar a entidade autoral todas as vezes que a questão se nos colocou como iniludível, em duas dimensões fundamentais: a da função autor, atendendo sobretudo à  teses de Foucault e de Bakhtine, e a da articulação dessa função com a actividade historicamente determinada do escritor.

Tal abordagem revela-se quase sempre pertinente quando, ao observarmos os mecanismos textuais, os interrogamos na sua dimensão retórico-pragmática como componentes do discurso, ou seja, a prática social e historicamente determinada da língua, numa prática retórico-discursiva caracterizável.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Adam, Jean-Michel, 1984, Le Récit,PUF, Paris

Adam, Jean-Michel,   1985, Le Texte Narratif, Nathan, Paris

Almeida, Fialho de, 1882, ed. cons., Figuras de Destaque, Clássica, Lisboa, 1923

Bal, Mieke, 1987, Teoría de la Narrativa,Cátedra, Madrid

Bloom, Harold, 1973, The Anxiety of Influence, University Press, Oxford

Deleuze, Gilles, 1969, Logique du Sens, ed. cons., UGE-10/18, Paris, 1973

Foucault, Michel, 1969, Qu-est´ce qu-un Auteur? – ed. cons., O Que é um Autor?, Vega, Lisboa

Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil,  Paris 

Lintvelt, Jaap, 1981, Essai de Typologie Narrative, Corti, Paris

Mignolo, Walter, 1989, “Teorías Literárias o Teorias de la Literatura?” in Reyes, G.(org.) Teorias Literarias en la Actualidad, El Arquero, Madrid

Reis, Carlos e, Mª do R. Milheiro,1989, A construção da narrativa Queirosiana.IN/CM, Lisboa


[1] Deparamo-nos aqui, em nosso entender, com uma dualidade que, desde Platão, perturba e fascina a reflexão sobre a mimesis entendida como imitação-representação. Comentando a crítica platónica aos “maus” produtos da imitação, Gilles Deleuze apresenta deste modo a dualidade segundo o filósofo grego: “a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro uma imagem sem semelhança. O catecismo, fortemente inspirado pelo platonismo, familiarizou-nos com essa noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança, mantendo, no entanto, a imagem. Tornámo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de colocar o acento no carácter demoníaco do simulacro” (1969: 352)  

[2] “O que é um autor? », Boletim da Sociedade Francesa de Filosofia, 63º ano, n.º 3, julho-setembro de 1969, pp. 73-104. (Sociedade Filosófica Francesa, 22 de fevereiro de 1969; debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl.) Dits Ecrits Tomo I texto n°69

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