Um livro recentemente apresentado em Lisboa, intitulado O valor dos medicamentos e das vacinas no contexto da pandemia – da autoria de distintas personalidades do meio académico, da área da regulação farmacêutica e da avaliação económica dos medicamentos – contém “erros de palmatória”.
O primeiro e mais evidente tem a ver com a menção no título e dezenas de vezes no texto – a bem dizer no cabeçalho de dezenas de páginas do livro – da expressão “medicamentos e vacinas”. Uma incorreção grosseira para prestigiados farmacêuticos, em contradição com a definição de medicamento que apresentam logo na primeira página:
“O medicamento é toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres humanos ou dos seus sintomas ou que possa ser utilizada ou administrada no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou, exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas.“
Lamentavelmente nenhuma definição de “vacina” é apresentada, o que seria muito útil no âmbito deste livro para o esclarecimento do público.
Sim, vacinas são medicamentos, e falar em “medicamentos e vacinas” é, no mínimo, uma redundância.
Será intencional para criar a dúvida na mente dos leitores, de que vacinas não são medicamentos? Ou que há diferenças na metodologia de avaliação do risco/benefício e avaliação económica, o tema do livro, das vacinas em relação aos restantes medicamentos?
Se este fosse o caso, esperar-se-ia que essas diferenças fossem bastante desenvolvidas no texto. Mas não. Por exemplo, nos dois capítulos dedicados à avaliação económica, praticamente só se fala em medicamento.
Quanto à avaliação do risco e às reações adversas a medicamentos (RAM), sem destacar diferenças nas metodologias para “medicamentos e vacinas”, a segurança é apresentada como distinta: “Tal como os medicamentos, as vacinas podem originar RAMs mais ou menos graves. No entanto, de um modo geral considera-se que o perfil de segurança das vacinas é superior ao dos medicamentos, pois a frequência de efeitos adversos a elas associado é muito baixa.”
Espera-se então encontrar menos RAMs nas vacinas, nomeadamente nas utilizadas contra a Covid-19. Os autores, procuram fazer crer aos leitores que na análise dos relatórios de farmacovigilância a grande maioria dos efeitos adversos apresentou gravidade ligeira a moderada.
E que estas são semelhantes aos reportados a outras vacinas (inchaço, vermelhidão, dor no local de injeção, etc, etc.); que como efeitos adversos graves e potencialmente fatais a Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) e a Food and Drug Administration (FDA) identificaram “apenas” a anafilaxia, a síndrome de Guillain-Barré, a trombose com trombocitopénia, a miocardite e a pericardite; e ainda, que as mortes com associação causal com as vacinas identificadas pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC norte-americano) não ultrapassaram algumas dezenas.
Pena que os autores não tenham considerado importante deterem-se a justificar por que razão nos sistemas de farmacovigilância, cujo papel muito destacam, havia já em 2021 para as vacinas Covid-19 mais de nove mil mortes notificadas ao CDC e 116 mortes notificadas ao INFARMED, mais de 700 mil RAMs notificadas ao CDC, e em Portugal mais de 20 mil, sendo quase sete mil graves, um número sem precedentes em toda a História (que tanto prezam) da farmacovigilância em Portugal, assim como na Europa e nos Estados Unidos.
Grave, porque enganosa, num livro que se pretende didático e esclarecedor, é a afirmação que no final do ano de 2020 “já estavam distribuídas vacinas seguras e eficazes e que foram aprovadas de acordo com uma rigorosa avaliação científica e com os procedimentos de autorização mais exigentes. Até 25 de março de 2021 foram aprovadas 12 vacinas, 4 das quais estão autorizadas pela EMA para utilização pela União Europeia: Comirnaty (BioNTech-Pfizer, Spikevax (Moderna), Vaxrevia (AstraZeneca) e Covid-19 Vaccine Janssen (Johnson &Johnson).”
Os autores, sabendo bem o que é uma Autorização de Introdução no Mercado (AIM) Condicional, em nenhum momento do livro mencionam que as ditas vacinas “autorizadas” ou “aprovadas”, afinal têm apenas uma AIM Condicional, o que significa, como explicam mais à frente: “a autorização condicional é um processo que permite desenvolver um medicamento que responda a uma necessidade médica não preenchida quando ainda não são conhecidos todos os dados científicos normalmente requeridos para a obtenção da AIM, assumindo que o benefício para a saúde pública supera o risco associado à incerteza inerente à inexistência de dados completos.”
Enquanto reconhecem que para o tratamento da doença Covid-19 os novos medicamentos disponíveis detêm apenas uma AIM Condicional, porque escondem essa informação relativamente às vacinas em utilização na população portuguesa e induzem os leitores a pensar que as vacinas estão autorizadas? Como podem afirmar que as vacinas são eficazes e seguras, se estudos estão em curso, e os seus dados científicos ainda não conhecidos?
Também omitem que à luz da regulamentação europeia as vacinas são medicamentos biológicos e que a sua natureza de autorização condicional obriga a consentimento informado. Detalhes importantes que foram aparentemente esquecidos.
“No Contexto da Pandemia” figura no título desta obra, quiçá com um intuito comercial, ou talvez para justificar a premeditada inserção de determinada narrativa pandémica. Com efeito, sem o devido suporte bibliográfico (uma importante lacuna numa obra que se pretende didática e credível) são feitas afirmações, aparentemente do foro do senso comum, como:
“Parece também já ser inquestionável o impacto positivo da vacinação no contexto da pandemia de COVID-19 que atravessamos (…)
Embora ainda seja cedo para avaliar o contributo global da vacinação na COVID-19, é evidente o seu impacto positivo na mitigação de surtos, na redução de casos graves e consequentemente na mortalidade associada (…)
A pandemia foi mais uma experiência que permitiu demonstrar a superioridade do benefício terapêutico face ao risco iatrogénico dos medicamentos e vacinas aprovados pelas agências reguladoras.”
Este livro editado no início de 2022, teve apresentações em instituições académicas entre Abril e Junho e para o público em geral também em Julho; pois nesta época de divulgação do livro, o senso comum que transparece é, afinal, uma enorme prevalência da variante Ómicron sobre anteriores variantes, mais transmissível, menos letal, com escape vacinal em milhões de portugueses que contraíram a infeção por SARS-CoV-2 apesar de este ser um dos países mais vacinados do mundo.
Acresce-se um excesso de mortalidade global em vários países e na população portuguesa, de causa(s) desconhecida(s), desde há alguns meses, pelo que falar em redução da mortalidade pelas vacinas sem estudos robustos que o confirmem, é uma questão de opinião.
Mais, segundo informações que os próprios autores veiculam no livro, a EMA calculou para o ano de 2012, a ocorrência de 197 mil mortes no espaço europeu atribuídas às reações adversas a medicamentos, além de 5% do total de internamentos hospitalares, sendo assim a quinta causa de morte em unidades de saúde.
Seria um grande esforço dedutivo colocar pelo menos a hipótese de as reações adversas a medicamentos (com o advento das vacinas Covid-19, em 2021, em Portugal, as notificações triplicaram relativamente aos anos anteriores), poderem ter alguma relação com o aumento da mortalidade da população mais vulnerável?
Questionável é ainda a descrição que os autores fazem das novas estratégias para desenvolvimento muito mais rápido de vacinas para a Covid-19, que habitualmente levariam mais de dez anos; e, segundo os autores, sem que tenha havido minimização de etapas, com uma avaliação que cumpre todos os requisitos aplicáveis a qualquer outra vacina ou medicamento, não comprometendo assim a comprovação da qualidade, segurança ou eficácia exigida na União Europeia.
Ora, se tivesse sido assim, no final do processo as vacinas teriam recebido uma AIM, o que não aconteceu até ao momento. As vacinas detêm apenas uma Autorização de Introdução no Mercado Condicional, enquanto se aguarda por mais resultados de estudos científicos requeridos pelas autoridades.
Lê-se no texto que “a FDA estimou que por cada 10 000 a 15 000 novos compostos investigados na Fase da Descoberta, cerca de 250 concluem a fase de investigação pré-clínica, dos quais apenas 5 são consideradas elegíveis para os ensaios clínicos em humanos e, finalmente destes, somente um apresentará eficácia, segurança e valor terapêutico acrescentado para justificar a sua aprovação e entrada no mercado terapêutico.”
Apesar da incapacidade de se terem produzido vacinas nas anteriores epidemias de coronavírus – SARS (2002/03) e MERS (2012) – não estranham os autores, nem fornecem aos leitores qualquer explicação, sobre a inusitada taxa de sucesso da investigação e desenvolvimento das vacinas para o SARS-CoV-2, com a chegada à fase final de ensaios clínicos, como eles próprios afirmam, de mais de uma dezena de novos compostos em apenas dois anos de pandemia.
Ainda uma curiosidade sobre algo que é afirmado neste livro: “No caso do INFARMED, esperemos que a nível nacional se encontrem soluções para reforçar uma instituição reconhecidamente à beira do colapso. Contudo, se adequadamente afetadas possui verbas próprias que permitam ajustar o seu funcionamento às exigências da União Europeia.” Assim, a seco, sem justificações para o eminente colapso do INFARMED nem de que forma desadequada estão a afetar as verbas próprias que possuem. E os leitores ficam por esclarecer.
Em conclusão, os autores invocando os seus “galões” académicos, e permeando um conjunto de informação tecnicamente correta que fará porventura parte dos programas de ensino superior na área do medicamento, enxertam neste livro, a propósito da Covid-19 e do desenvolvimento de vacinas, um conjunto de afirmações de propaganda, semeiam inverdades, omitem dados relevantes e demitem-se de questionar.
Por estas razões, um livro que não se recomenda.
Teresa Gomes Mota é médica
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